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Neste domingo (25), a maior cidade do País completa 461 anos, e tem entre seus mais urgentes desafios superar a pior crise hídrica desde a sua fundação. Apesar de o discurso oficial recusar o rótulo racionamento, moradores de diferentes regiões do município estão sendo obrigados a se adaptar à rotina de escassez de água, conforme já havia mostrado o R7 em outubro de 2014.
Nos últimos meses, a situação vem se agravando. Desde 11 de janeiro deste ano, o volume do Sistema Cantareira, principal manancial do Estado e responsável pelo abastecimento de grande parte da região metropolitana, passou a cair ininterruptamente. No dia em que o aniversário de São Paulo é comemorado, o nível do reservatório atinge 5,1% da capacidade, o mais baixo já registrado.
A questão pluviométrica dá um contorno ainda mais preocupante ao cenário. O acumulado de chuvas em janeiro até agora equivale a menos de um quarto do esperado para todo o mês. Como consequência, desde o dia 1º, o reservatório já perdeu quase 2% do volume de armazenamento. A Sabesp capta água da segunda cota do volume morto do Cantareira
*Reportagem: Ana Cláudia Barros, do R7Jacques Lepine/Estadão Conteúdo
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Moradora da Vila Costa Melo, na zona leste, a dona de casa Neide Molina, 61 anos, conta que, desde o ano passado, convive com inconstância no abastecimento de água. Em agosto, ela começou a notar que o fornecimento era cortado no fim da tarde e retomado por volta das 6h do dia seguinte. De acordo com ela, em dezembro, o quadro começou a se agravar.
— Eles passaram a fechar a água mais cedo. Primeiro era por volta das 17h. Depois passou para as 16h. Em seguida, para 15h30, 15h. Agora, teve dia em que, às 13h, nós estávamos almoçando e falei: “Vamos almoçar rápido para lavar louça”. Mas não tinha mais águaDaia Oliver/R7
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Segundo Neide, o abastecimento tem sido restabelecido mais tarde.
— Estava voltando às 6h. Depois, passou para as 7h. Hoje (quinta-feira), por exemplo, voltou quase às 9h.
Ao contrário de muitos paulistanos, a dona de casa decidiu não armazenar água em baldes.
— Não vou ficar armazenando água limpa fora da caixa d’água. Depois de dois, três dias, se não a usei, ela vai ficar suja para uso.
Neide resolveu comprar mais uma máquina de lavar. A ideia é reaproveitar a água da lavagem de roupas brancas na segunda máquina, destinada a toalhas de banho, calça jeans e outras peças.
— Na última lavada, quando já não vou usar a água para roupa, para não desperdiçar, limpo o chão da cozinha, a escada, o jardim de invernoDaia Oliver/R7
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Disciplinada, Neide é linha dura na hora de gerenciar o consumo de água da casa. Com bom humor, afirma que fiscaliza o banho do marido e dos filhos, que deve durar, no máximo, cinco minutos — e tem que fechar o chuveiro na hora de se ensaboar.
— Coloquei um relógio no banheiro para o meu marido. Ele vai para o banheiro e esquece [...] Se eles demoram, vou lá e bato na porta
Ela conta ainda que mudou a rotina da casa para se ajustar à crise.
— Antes, fazia comida todos os dias. E depois tinha que lavar a louça, limpar fogão, pia, chão, o que gastava muita água. Agora, faço uma panela de feijão, uma de arroz e faço um monte de mistura de uma vez. Ponho na geladeira. Depois, são só os pratos [para lavar].Daia Oliver/R7
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Para a empresária Antônia Lima Bueno Grahl, 63 anos, apesar dos transtornos, a crise hídrica não tem sido propriamente um mau negócio. Dona de lojas na região central da franquia francesa 5àsec, especializada na lavagem a seco de roupas (feita exclusivamente com produtos químicos), ela afirma que a procura pelo serviço aumentou em torno de 20% nos últimos meses. Ela tem a franquia há 15 anos e prevê dias ainda mais prósperos.
— E acho que vai aumentar mais ainda [a demanda]Daia Oliver/R7
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Funcionária da lavanderia, Vanderléia Marinho da Silva, 46 anos, que trabalha há mais de uma década com Antônia, destaca que, quando é necessário fazer a lavagem tradicional, tudo é realizado para que haja o máximo de economia de água.
— Fazemos uma boa pré-lavagem para não voltar à lavagem novamente.
Outra regra seguida no estabelecimento é ocupar o volume completo da máquina com roupas, evitando desperdício. Esta e outras medidas renderam à empresária desconto de 40% na conta de águaDaia Oliver/R7
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A dona de casa Sônia Regina dos Santos Zotto, 54 anos, moradora da Freguesia do Ó, na zona norte, é outra que reclama dos cortes no fornecimento de água. Ela diz que, recentemente, ficou mais de 48h com as torneiras secas. Quando a crise começou a se agravar, o abastecimento passou a ser suspenso a partir das 16h e só era normalizado na manhã do dia seguinte, por volta das 7h, segundo relata Sônia.
— Agora, o início é às 13h, e água costuma chegar às 9h, 9h30. Se você não levantar cedo, fica sem lavar roupaDaia Oliver/R7
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A dona de casa adotou uma série de medidas para minimizar as consequências da crise hídrica. Uma delas foi uma engenhoca construída pelo marido, que adaptou canos às máquinas de lavar no terraço. Com o artifício, elas agora soltam a água diretamente em baldes, colocados no térreo do imóvel.
— Uso a água do amaciante para lavar o quintal. Comprei um balde novo para começar a guardar água limpa e não ficar como no domingo (18), quando faltou água. Tivemos que tomar banho na casa da minha sograDaia Oliver/R7
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Molhar as plantas, só com água da chuva, destaca Sônia, que também criou um sistema para captar o líquido. Muitas não resistiram à escassez de água e acabaram secando.
— Está feio o negócio por aquiDaia Oliver/R7
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Nora de Sônia e moradora de uma casa no mesmo quintal, a diarista Eliene Santana Zotto, 34, usa a água da máquina de lavar para dar descarga e limpar a casa. Até a que cai do chuveiro durante o banho é recolhida.
— A gente faz o que pode.
Eliene diz temer que a falta de água tenha impacto no seu trabalho como diarista.
— Se não trabalhar, eu não ganho. Se não tiver água, vou ter que voltar para casa e perder o meu dia. Isso vai me prejudicar.
Revoltada com a situação, Sônia diz que não há muito o que celebrar no aniversário de São Paulo.
— Não é possível nem dar parabéns [para a cidade]. Tem que dar pêsames. Na situação em que estamos, não dá para comemorarDaia Oliver/R7
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Marcos Roberto Mendes Júnior, 40 anos, idealizador da AcquaZero, rede de lavagem automotiva sustentável, é outro que encontrou na crise hídrica uma oportunidade de crescer. No mercado desde 2009, ele afirma que tanto a procura pela franquia quanto o número de clientes aumentaram diante da escassez de água.
— Até 2009, eu trabalhava na área de informática. Decidi não atuar mais nesse segmento e procurar alguma coisa para fazer por conta própria. Comecei a pesquisar o mercado, e vi o segmento da lavagem de carros de forma ecológicaDaia Oliver/R7
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Já em 2009, Mendes, que teve um lava-jato tradicional, pensava que a lavagem de carros com água “estava com dias contados”.
— O que aconteceu a partir do momento em que começou a ter essa crise hídrica? Houve um aumento em torno de 30% na procura em todas as lojas da AcquaZero localizadas em locais que sofrem com o problema do racionamento. No resto do País, também houve aumento [...] A crise também trouxe mais interessados na franquia. A procura aumentou mais de 100%, comparado a 2013.
Evandro oliveira, 36 anos, sócio de Mendes, diz que atualmente há fila de espera para obtenção da franquiaDaia Oliver/R7
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O sistema de lavagem ecológica utilizado pela empresa utiliza produto à base de cera de carnaúba e teflon. Por meio de borrifadores de pressão, ele é aplicado na lataria do veículo. Com flanela de microfibra, a sujeira é removida. Um litro do produto é diluído em dez litros de água. Destes 11 litros, 300 ml são usados em cada lavagem.
Segundo informações do site da Sabesp, em uma lavagem convencional de carro, com duração de 30 minutos, são gastos, em média, 216 litros de água, com uma mangueira não muito aberta. Com meia volta de abertura, o desperdício alcança 560 litrosDaia Oliver/R7
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Gerente de uma loja de produtos de limpeza no bairro Parada Inglesa, na zona norte, Lucas Cunha, 21 anos, conta que a venda de baldes foi incrementada com a seca.
— Eles sempre ficavam na frente da loja, mas como a procura aumentou uns 70%, decidimos fazer essa fileira.
O valor do produto também sofreu interferência da crise hídrica, conforme Cunha.
— Um balde de 100 litros está R$ 60, e era em torno de R$ 20 mais baratoDaia Oliver/R7
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O auxiliar de farmácia Renato Oliveira, 41 anos, morador da rua Maestro Ernesto Lahos, Cidade Patriarca, na zona leste, ficou sem água de sábado (17) até terça-feira (20). Ele, a mulher e os filhos pequenos tiveram que tomar banho e lavar roupa na casa de parentes.
As altas temperaturas registradas naqueles dias só aumentaram o desconforto da família. Com medo de enfrentar novamente a falta de água, ele decidiu se precaver. Na quarta-feira (21), comprou uma segunda caixa d’água.
— Comprei uma segunda caixa d’água e deixei embaixo. E comprei também uma bomba de sucção para puxar para a caixa de cima. Não quero passar por isso de novo [...] Você chega em casa de manhã, quer tomar banho e não tem água. Aí, vai trabalhar à noite e tem que tomar banho de canequinha. Teve um dia que não tinha água para fazer mamadeira para o meu filho. Tive que comprar uma garrafa de águaDaia Oliver/R7
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Comprar caixa d’água extra passou a ser artifício adotado por muitos moradores de São Paulo. Que o diga Hiroshi Shimuta, presidente da loja de materiais de construção Nicom. De acordo com ele, as vendas do produto no estabelecimento aumentaram cerca de 30% com a crise hídrica.
— No meu depósito tem caixa d’água saindo pelo ladrão [...] Muitas vezes, as pessoas só tinham uma caixa pequena, de 250 litros, por exemplo. Então, passaram a comprar caixas de 500 litros, que não são tão grandes, mas, no total, ficam com 750 litrosDaia Oliver/R7
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Hiroshi Shimuta completa o raciocínio:
— Pessoas que não precisavam de caixa d’água resolveram ampliar. Antes, 250 litros davam, porque saía e entrava [água]. Agora, você fica três dias com água e um semDaia Oliver/R7
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Em nota, a Sabesp esclareceu que as altas temperaturas têm provocado elevação de consumo, o que tem comprometido a capacidade dos reservatórios. Outra medida que impacta o abastecimento, segundo a companhia, é a redução de pressão, em especial em regiões altas, longe dos reservatórios. A empresa destacou que tem promovido ajustes na gestão de pressão justamente para evitar que moradores fiquem mais de 24 horas sem água. Para evitar intermitências, a Sabesp ressaltou a importância de as moradias contarem com caixa-d´água e os clientes fazerem o uso racional da água
Mario Ângelo/Sigmapress