Não são só as famílias do presidenciável Eduardo Campos e das outras seis pessoas que morreram no dia 13 de agosto de 2014 que buscam respostas sobre o acidente. Depois da queda do jato particular que levava Campos e sua equipe para uma agenda de campanha no Guarujá, litoral de São Paulo, os moradores do Boqueirão, em Santos, que tiveram suas casas atingidas pela aeronave, convivem com a angústia, os medos e as dificuldades para reconstruir os imóveis e até mesmo suas próprias vidas.
A reportagem do R7 esteve, na última semana, no local do acidente, que completa um ano nesta quinta-feira (13). O clima pacato da rua Hahia de Abreu e suas imediações ganha novas nuances quando comparado às imagens de destruição amplamente divulgadas, nas quais peças de avião e corpos se misturavam. Existe um fardo naqueles terrenos, que não deixará de existir tão cedo. Entre as pessoas que convivem com esse peso, há aquelas que tomam remédios para dormir e aquelas que tentam demonstrar normalidade, mesmo que seus depoimentos as contradigam.
Tudo ainda é novo. As estruturas das casas começaram a ficar prontas há pouco tempo e ainda dividem espaço com muros quebrados e reformas inacabadas. A academia afetada pela queda reabriu as portas há um mês, mas uma das piscinas ainda está sem acabamento e o dono luta para trazer seus quase 800 alunos de volta. Quem olha o estabelecimento custa a acreditar que há um ano o local estava repleto de fragmentos. Saber desse fato faz com que quem esteja ali reconstrua na imaginação aqueles momentos de terror. É inevitável.
Pensar que ninguém em terra se feriu vira um desafio lógico. Tantos prédios, casas e pessoas e o avião caiu justamente em um espaço aberto e não se chocou com nenhum edifício. Para os religiosos, um milagre. Para os céticos, pura sorte.
A busca implacável por respostas faz com que alguns moradores apelem para versões conspiratórias sobre o acidente. Por que o avião não explodiu? Por que nenhum corpo estava inteiro? Será que a aeronave foi derrubada? Vale tudo para encontrar algo que tire a angústia e traga explicações sobre aquele fatídico dia. É como se esses esclarecimentos tivessem o poder de afastar o medo que ficou, em maior ou menor grau. Talvez haja a esperança de que essas respostas atenuem os traumas e façam até mesmo o médico suspender a medicação para dormir.
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Apesar de a reconstrução pessoal ser dolorosa, reconstruir os lares e a academia destruída também deu e — continua dando — trabalho para alguns dos envolvidos. O imbróglio sobre quem poderia se responsabilizar pela aeronave fez com que apenas dois moradores aceitassem acordos sigilosos. A dona de uma das casas recebeu uma quantia do seguro, porém gastou mais que o dobro na reforma do imóvel. E o dono da academia segue tentando na Justiça o direito de receber uma indenização, inclusive pelo tempo que passou de portas fechadas. As batalhas judiciais ganham novos contornos todos os dias. O que permanece intacto é o sentimento de abandono, seja ele financeiro ou emocional. Os moradores acreditam que mereciam mais.
Conheça algumas histórias de quem viveu de perto a tragédia:
"Fiquei isolado"
O arquiteto aposentado Jean Jacques Monteux viu o seu arborizado quintal com piscina ser reduzido a entulho no dia do acidente.
Monteux conta que estava no escritório quando ouviu um "assobio muito forte".
— Saí [do escritório] e vi um monte de peças pegando fogo. Peguei a mangueira de quintal e tentei apagar as chamas. Quando andei pelo corredor, notei um incêndio grande no prédio ao lado, que tomou toda a minha atenção. Demorei alguns minutos para notar que tinha um avião enterrado no quintal e que todos os muros tinham desabado. Poucos tempo depois, os bombeiros me tiraram da casa e passei três dias em um hotel. Minha casa ficou aberta e com todos os vidros quebrados.
O aposentado é um dos personagens que tentam levar a história de uma forma mais leve. Porém, há detalhes que provam que o fato está vivo e o acompanha. No quintal, sob uma estrutura de madeira, uma pasta branca onde está escrito Cessna (nome do modelo do avião que caiu) é o local escolhido para guardar recortes de jornais e documentos referentes ao acordo judicial que fez com os donos da aeronave. Em relação ao dinheiro que recebeu, o aposentado não entra em detalhes. O sigilo faz parte do acordo.
O fundo da casa não tem mais piscina, que era a alegria dos netos do aposentado. O motivo da decisão de tirar a área de lazer Jean prefere não divulgar. Na terra ainda não há plantas e os muros brancos dão uma estranha tranquilidade ao lugar que, há um ano, era um cenário de destruição.
O que o aposentado sente hoje é a sensação de ausência. Alguns vizinhos se foram e a rotina ainda não foi restabelecida.
— A academia que tinha falatório e música reabriu há um mês. Meus vizinhos se mudaram. Ficou só o André [que também teve parte da casa destruída]. Um vazio total.
"Me sinto abandonado"
O aposentado Celso Luiz Vancsek não imaginava que a perna quebrada em um atropelamento provavelmente o ajudaria a sobreviver.
Celso conta que meses antes da queda do avião foi atropelado na porta do prédio onde mora. Após passar meses de cama, no dia do acidente, o médico marcou a retirada do gesso. E foi exatamente enquanto estava fora que tudo aconteceu.
— Eu tinha passado os últimos meses no quarto, onde eu ficava com meus quatro cachorros o dia todo na cama. Quando saí para ir ao hospital, o avião caiu e meu quarto pegou fogo. Se eu estivesse em casa teria morrido, com certeza.
Assim que chegou do hospital, o aposentado entrou em desespero e chegou a agredir um bombeiro com a muleta para conseguir chegar até o seu apartamento e checar se os animais estavam bem.
— Foi uma baixaria. Mas a baixaria maior viria depois com o abandono psicológico e social que tive. O prefeito deu isenção de IPTU para os moradores e depois tirou o benefício. Entrei na Justiça para entender os motivos. Até agora não sei.
Além do problema com o imposto, o aposentado afirma que não conseguiu ressarcir boa parte dos danos, que a perícia alegou não ter sido causada pela queda do avião.
— Não tenho como provar porque meu celular, onde estavam as imagens, quebrou. Estou desamparado e reformando o que eu posso na medida do possível.
Celso só consegue dormir se tomar remédios. O trauma foi grande e ele teme que volte a acontecer.
— Há um ano, um presidenciável morria no meu quintal. Tenho pânico. Não é todo dia que um avião cai na sua casa.
"Tenho medo de tudo"
A decoradora Zuleika Saibro é uma das pessoas mais traumatizadas com o acidente com as quais o R7 conversou.
Zuleika toma remédios para dormir desde que o estrondo da queda do avião a acordou naquele 13 de agosto.
— Parecia que a casa estava desabando. Eu não sabia o que estava acontecendo. Antes do acidente, eu não tinha medo de nada, hoje eu tenho medo de tudo.
Parte da estrutura da casa foi alterada para atenuar o trauma e evitar que toda vez que Zuleika saísse no quintal recordasse o acidente. Entre as mudanças está a troca da antiga janela por uma porta de correr e as cores do revestimento da piscina também foram mudadas. Detalhes aparentemente sutis, mas que têm ajudado a decoradora a esquecer ao máximo aquele dia.
A reconstrução da casa aconteceu, mas custou mais que o dobro do que o seguro pagou, cerca de R$ 17 mil. A decoradora calcula que tenha gasto R$ 50 mil na pintura, troca de janelas, reposição de vidros entre outras reformas. E ainda há obras por fazer, como a reconstrução de parte do muro, onde a asa do avião bateu. Um dos quartos afetados pela queda não recebe a visita de Zuleika desde o dia do acidente.
— Mas mesmo assim [com as mudanças] eu lembro do acidente. É só ouvir o barulho de um avião que eu saio correndo para fora. Até barulho de ambulância e chuva forte me apavoram.
Bastante emocionada e com a voz embargada, Zuleika pede desculpas à reportagem por não conseguir segurar as lágrimas ao relembrar os momentos de pânico que passou e tudo o que aquela data ainda representa em sua vida. Inclusive, o barulho, o qual ela compara ao de uma "bomba explodindo", afetou sua audição.
Mesmo com tantos traumas, a decoradora fez de tudo para ficar na casa por ser o "imóvel que sempre sonhou", mas assume que mudar ainda é uma opção.
— Por mim eu já teria mudado. Tudo aqui lembra o acidente. Lembro das peças do avião espalhadas pelo quintal. O cheiro forte de combustível ficou dias na casa. Tudo me traz recordações ruins.
"Quero reconstruir minha academia"
Benedito Juarez Câmara é o dono da academia Mahatma, que teve grande parte da estrutura completamente destruída com a queda do avião.
Durante a visita da reportagem, Juarez, como é mais conhecido, recebia a visita de duas arquitetas da capital, que serão as responsáveis pelo novo projeto arquitetônico e decorativo do local, que reabriu no dia 12 de julho deste ano.
Juarez conta que não estava no local na hora do acidente, mas relembra como foi o momento em que entrou na academia pela primeira vez.
— A sensação que eu tinha é que eu estava na Faixa de Gaza. Me lembro bem de ter visto um tênis azul e, pendurado em um dos equipamentos, a bolsa de equipamento do fotógrafo, que tinha oito lentes completamente moídas. Era como se alguém tivesse colocado propositalmente a bolsa ali.
Além dos objetos, o empresário não consegue se esquecer dos pedaços de corpos espalhados pela academia, o que reforçava ainda mais a impressão de um cenário de guerra.
— A Prefeitura de Santos e a Defesa Civil tiraram da parte de cima da academia quatro caçambas cheias de entulho e mais seis [caçambas] da parte de baixo. Depois que acabou o rescaldo, ainda encontramos muitas peças de avião. Até pouco tempo mexemos no telhado e ainda havia pedaços da aeronave. Mas chegou um momento em que eles não precisavam mais de peças e de fragmentos de corpos para análise e tudo que encontramos foi descartado.
Juarez é um dos afetados pela tragédia que deu início a uma guerra judicial contra o partido de Campos, o PSB, e a AF Andrade, empresa dona da aeronave. Mas, no mês de julho, ele sofreu uma derrota na Justiça. O partido recorreu da primeira decisão, que dava direito ao empresário de receber uma indenização de R$ 10.000 por cada um dos meses que ficou com as portas fechadas, o que é chamado de lucros cessantes. O empresário pretende levar a ação até o STF (Supremo Tribunal Federal). Além disso, Juarez pretende entrar com uma ação de danos morais.
— Não vou desistir. Reabrimos há um mês com a ajuda de amigos. Conseguimos sobreviver por meio de doações e empréstimos de salas em outra academia para atender os nossos alunos. Porém, dos 800 inscritos na academia na época, hoje temos cerca de 100.
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