Tentaram prejudicar minha carreira, diz ex-aluno da USP que denunciou Show Medicina
Grupo tradicional na universidade organiza festa de recepção que inclui práticas violentas
São Paulo|Fernando Mellis, do R7
Há 21 anos, quando era estudante da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Leon Garcia fez a primeira denúncia sobre trotes violentos aplicados por uma tradicional fraternidade de alunos, o Show Medicina. As ameaças e o impacto social no ambiente acadêmico foram imediatos. Mas apenas depois de formado ele descobriu uma tentativa do grupo de impedir que ele fosse aprovado na residência médica.
— Quando eu estava na residência no Hospital das Clínicas, uns cinco anos depois, uma pessoa que fez parte da banca de seleção do meu concurso de residência me contou que tinha sido procurada por alunos e residentes membros do Show Medicina para pedir que me prejudicasse no concurso, porque eu era a pessoa que tinha denunciado o trote deles.
A fraternidade à qual ele se refere só aceita homens – mulheres podem apenas costurar – e tem como objetivo produzir uma peça humorística de teatro. A admissão é feita após um “vestibular” que, segundo Garcia, é um trote, revelado apenas a quem aceita participar. Um pacto de silêncio garante que as práticas, muitas vezes violentas, não cheguem ao conhecimento do resto da faculdade.
Garcia não quis fazer parte do grupo, mas quando estava no quarto ano da faculdade, em 1993, soube como eram os trotes aplicados pelos integrantes do Show Medicina. Ele e alguns colegas ficaram impressionados com a violência e com o fato disso não ter sido revelado antes, e decidiram denunciar. Por meio de uma série de artigos publicados no jornal do centro acadêmico, os demais estudantes puderam entender a forma como eram os rituais de iniciação.
Faculdades omitem comportamento violento dos alunos, diz professor da USP
Eles também relataram casos de prostitutas levadas a algumas festas no teatro da faculdade. Não demorou muito para o então estudante e os colegas sentirem os efeitos das denúncias.
— Um terço ou quase metade das pessoas que me cumprimentavam na faculdade pararam de me cumprimentar, porque achavam que eu estava errado por ter revelado um segredo que não era para revelar. Ouvi algumas ameaças genéricas. Um amigo que tinha escrito um dos artigos foi agredido fisicamente na Atlética. Outro amigo foi expulso da Atlética, quase agredido.
A direção da faculdade montou uma comissão de sindicância para apurar o caso. Ao final, a FMUSP, por recomendação, decidiu não emprestar mais, por alguns anos, o teatro para o Show Medicina.
Garcia diz que as ameaças na faculdade cessaram depois de algum tempo. Porém, teme que ao longo dos anos muitos recém-formados possam ter sido vítimas desse tipo de interferência externa em concursos de residência.
— Evidentemente, eu não fui prejudicado, passei no concurso. Mas de fato houve essa tentativa de pressão. Na residência só tive que conviver com algumas caras feias.
Imagem da faculdade x sofrimento dos alunos
Hoje Leon Garcia é diretor de Articulação e Coordenação de Políticas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Ao ver no noticiário as recentes denúncias de estupro e trotes violentos na FMUSP, ele avalia que o problema poderia ter sido resolvido antes.
Pelo menos dois episódios nesses 21 anos deveriam ter servido de lição, de acordo com Garcia. Um deles foi a denúncia feita em 1993. O segundo foi a morte do calouro Edison Tsung Chi Hsueh em um trote, sete anos depois.
— A faculdade foi incapaz nesse tempo todo de resolver esse problema de preconceito, de amedrontamento, de violência entre os alunos, porque acho que colocou em primeiro lugar a preservação da imagem da faculdade. Não se preocupou com o sofrimento das pessoas que passaram por esses trotes. Os episódios recentes mostram que o clima na faculdade permite que isso continue acontecendo.
Segundo ele, o hábito e a naturalidade como esses rituais são vistos dificulta mais ainda.
— O argumento para justificar os trotes violentos sempre foi a tradição. Passar pasta de dente no ânus de um calouro é tradição. Nos episódios que eu vivenciei, a maioria dos alunos estava indiferente ou nos condenando por ter denunciado.
MP instaura inquérito para apurar violação de direitos das minorias na USP