Ex-craque com diabetes controlou doença e chegou até à seleção brasileira de futebol
Washington, ex-São Paulo e Flu, entre outros, ficou diabético aos 21 anos e só parou aos 35
Saúde|Eugenio Goussinsky, do R7
Na amplitude seca de Brasília, pulsava no coração do menino Washington Stecanela Cerqueira a paixão pela bola. Tempos em que a comunicação não era tão rápida. Mas sua imaginação sim, quando, lá do cerrado, acompanhava pela TV o atacante Careca, então no Napoli, se colocar com tanta precisão na área quanto Washington um dia gostaria de se colocar na vida.
Para isso, é claro, se apegava ao futebol, o mesmo que levara o ídolo Careca do anonimato à glória internacional. Essa crença, essa fé, essa paixão, na vida de Washington, 41 anos, sempre tiveram razão.
Do pequeno Brasília, de sua cidade natal, ele foi para o Caxias do Sul (RS), ainda no juvenil, iniciar a trajetória cigana de um jogador. Foi quando, aos 21 anos, em 1996, rompeu os ligamentos do joelho. E, na recuperação, que durou meses, se tornou diabético, passando a ter diabetes mellitus do tipo 1, algo não tão comum, já que tal doença costuma se manifestar na infância. A partir daquele momento, o pâncreas de Washington parou de produzir insulina.
— A contusão foi uma grande mudança para mim. Estava jogando, na ativa e de repente parei, com a perna engessada. Nesse processo começou a aparecer o diabetes. Não dá para se ter certeza da causa. Alguns falam que foi algo psicológico, o estresse da situação, a imunidade ficando mais baixa. Acredito que foram vários fatores, sem que se saiba ao certo qual deles foi o decisivo.
A notícia foi outro choque. Ele mal podia acreditar que, justamente no momento em que superava a grave contusão no joelho, teria de encarar outra batalha: a inesperada e crônica diabetes. À sua mente, veio a única pergunta possível no momento:
— Então doutor, isso vai atrapalhar minha carreira?
Washington, apreensivo, esperou a resposta do médico:
— Não, você poderá jogar normalmente. Se você controlar a doença, tomar os medicamentos corretamente, poderá ter uma carreira normal.
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Alto rendimento e diabetes
E foi o que aconteceu. Por muitos anos, Washington dividiu sua vida em obedecer os técnicos e os médicos para seguir em frente. Chegou à seleção brasileira, em 2001, desta maneira, atingindo o auge da carreira. Dividiu as tarefas assim como, no dia a dia, ele dividia a ferocidade de seu estilo dentro de campo - como atacante alto e frio na finalização - com o estilo pacato e bom de papo fora dele. Nem mesmo a doença crônica o fez desistir. Aliás, ele atribui ao esporte um fator fundamental para que lidasse melhor com ela.
— O esporte me ajudou muito no combate ao diabetes. Graças a ele o processo ficou bem controlado. Treinava e jogava com intensidade. Nem costumava ter nutricionistas específicos, o cardápio no futebol já é balanceado, como tem de ser, no fundo, para qualquer pessoa.
Durante a carreira, alimentação não foi o problema. Ele evitava doces, conforme diz, mas não a ponto disso ser uma obsessão.
— Minha alimentação não era tão especial. Podia me alimentar sem muitas preocupações, pois gastava muita energia como atleta de alto rendimento. A comida, nas concentrações, já é monitorada e isso, dentro do sistema do esporte, ajuda também em situações como a minha. O diabetes nunca me atrapalhou. Os médicos sabiam e só contribuíam, além de eu seguir todas as recomendações, o que é importante para qualquer pessoa com o problema.
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O endocrinologista Freddy Goldberg Eliaschewitz, do CPCLIN (Centro de Pesquisas Clínicas), em São Paulo, afirma que a prática de esporte de alto rendimento por diabéticos é algo um tanto comum.
— São vários os casos de atletas de alto rendimento que têm diabetes. Há isso em todas as modalidades. Inclusive temos um da última equipe olímpica de natação brasileira. No futebol não conheço, mas sei que tem. Tem no automobilismo, no alpinismo, no tênis. Há um corredor de automobilismo que tem um sensor de glicose ligado no painel do carro, ele vai dirigindo o carro e vendo quanto está a glicose dele. O esportista de alto rendimento, diabético, pode ter uma performance tão boa quanto o que não tem diabetes, desde que a doença seja controlada.
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Eliaschewitz destaca, porém, que o paciente com diabetes não precisa ser um atleta de alto rendimento para obter melhoras.
— O esporte ajuda a tratar o diabetes, mas é bom ficar claro que ninguém precisa ser atleta de alto rendimento para controlar a doença. A atividade física faz parte e o que se recomenda são caminhadas, no mínimo, o que já traz benefício.
Coração e insistência
Do Caxias, onde trabalhou com o atual técnico da seleção brasileira, Tite, de quem é amigo até hoje, Washington passou por vários clubes. Internacional de Porto Alegre (1997), Grêmio (1997), Ponte Preta (1998 e 2000-2002), Paraná (1999-2000), Fenerbahçe (Turquia, 2002-2003), Atlético-PR (2003-2004), Tokyo Verdy e Urawa Red Diamonds (Japão, 2005-2007), Fluminense (2008 e 2010) e São Paulo (2009-2010).
No meio da carreira, no Fenerbahçe, o ex-jogador teve um problema cardíaco que, com o tempo, o fez colocar três stents (pequeno tubo para fluxo). Também nesse caso, segundo o que ele ouviu, não é possível atribuir as obstruções ao diabetes, apesar de ser uma possibilidade bastante plausível. Mesmo assim, após ficar um ano parado, foi aceito no Atlético-PR e deslanchou, tendo sido artilheiro do Campeonato Brasileiro da época, com 34 gols, recorde entre os artilheiros da competição. Também terminou como artilheiro em 2008, pelo Fluminense, por onde foi campeão brasileiro em 2010.
— Os clubes pelos quais mais me destaquei, como Ponte Preta, São Paulo, Atlético-PR e Fluminense estão no meu coração. O Flu, destes, é especial, pois foi onde encerrei a carreira. Não parei de jogar por causa de problemas de saúde. Foi uma opção minha, poderia continuar, mas já estava cansado. Joguei em alto rendimento por mais sete anos após colocar stents e tinha condições de prosseguir mais um tempo.
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Após o término da carreira, Washington, que é casado com Andrea, foi dirigente do Caxias e hoje é Secretário Municipal de Esportes em Caxias do Sul. Continua controlando o diabetes e praticando esportes. Seu físico e seu estilo também mudaram pouco. O rosto de olhar curioso, com um aspecto inocente, o sorriso fácil e as palavras dóceis continuam a interagir com o corpo alto e forte de gladiador. E o mesmo senso de colocação que um dia procurou no esporte se tornou um companheiro de rotina.
— Costumo correr, mas futebol é o que mais pratico. Continua sendo sagrado para mim.
Agora, no entanto, uma boa dose de energia é também gasta com os filhos, Ana Carolina (14), Catharina (9) e Antônio (4). Dos três, só o caçula não havia nascido quando ele era jogador (ele encerrou a carreira em dezembro de 2010). E quando crescer, além das histórias repetidas pelo pai, sempre que alguém das antigas lhe contar sobre o atacante, começará o relato pelo apelido como Washington ficou conhecido. Em tom de fábula, é claro: "Era uma vez, o Coração Valente..."
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