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Fila, espera e falta de médicos: para hospitais brasileiros cuidar de criança dá prejuízo

PS e pediatrias particulares têm fechado, gerando filas enormes, queixas e até agressões físicas

Saúde|Eugenio Goussinsky, do R7

Filas têm sido longas também nos hospitais particulares
Filas têm sido longas também nos hospitais particulares Filas têm sido longas também nos hospitais particulares

Há algumas décadas, uma família de classe média alta, por causa de uma febre de uma criança, telefonava para um médico conhecido de anos e ele não demorava para aparecer. Tocava suavemente a campainha, sem precisar de porteiro eletrônico, entrava com a maletinha e o estetoscópio, cumprimentava, atendia a criança e, depois de presenteá-la com um pirulito, ia colocar a conversa em dia com os pais, tomando um cafezinho acompanhado de torta.

Este tipo de situação, conhecida pelo professor Walter Cintra Ferreira Jr., coordenador do Curso de Especialização em Administração Hospitalar e de Sistemas de Saúde da FGV (Fundação Getúlio Vargas), é bem diferente hoje em dia. Avanços tecnológicos, medicina mais cara, crescimento populacional, entre outros, tiraram a criança de casa e a levaram, junto com os pais, a horas de fila à espera de atendimento em algum Pronto-Socorro Infantil ou setor de pediatria de um hospital particular.

—Hoje os hospitais viraram bancas de venda de material e medicamentos. Especialidades com alto valor agregado, que exigem exames, cirurgias, materiais especiais como próteses são mais rentáveis. A pediatria usa pouco estes materiais, faz mais diagnóstico clínico e os hospitais têm reduzido a oferta deste atendimento.

O dr. Ferreira Jr. fala com conhecimento de causa. Segundo o R7 apurou junto ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), nos últimos 10 anos, contando hospitais e prontos-socorros, foram fechados 65 setores de pediatria. Mesmo que outros 49 tenham sido abertos, a defasagem é clara. Enquanto isso, a demanda aumenta.

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—No modelo de financiamento dos hospitais privados, muitos financiados por planos de saúde, ganha mais quem gasta mais e isso inclui diárias, taxas, material, exames, medicamentos, cirurgias e honorários. Maternidade, obstetrícia e pediatria usam menos recursos e não conseguem arcar com o pagamento do custo fixo de um hospital, alto para manter a competitividade.

Falta de pediatras

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O atendimento à criança, nesse caso é o que menos está contando, por não gerar a esperada receita. O que esta situação está gerando mesmo é uma queda no número de pediatras formados. O presidente da SPSP (Sociedade de Pediatria de São Paulo), Mário Roberto Hirschheimer, diz que, apesar de a pediatria contar com o maior número de médicos entre todas as especialidades no Brasil (pouco mais de 30 mil), esta quantidade está caindo.

—Há falta de pediatras, pois a remuneração tem sido baixa. A pediatria exige um atendimento especializado, constante, consultas mais demoradas e trabalho junto aos pais. O principal instrumento é o conhecimento pediátrico. Como gestores, os hospitais estão corretos, o sistema precisa ser mudado.

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Em meio a números, um desabafo. Baseado em pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, em 2014, encomendada pela SPSP, Hirschheimer conta que 63% dos pediatras entrevistados revelaram que foram vítimas de agressões psicológicas, 10% físicas e 4% sofreram o chamado cyberbulling, em função da demora no atendimento devido à pouca quantidade de médicos. Houve casos em que médicos saíram escoltados.

— Isso é um absurdo. Tem assustado os pediatras. O pediatra também é vítima deste sistema. Existe muita gente que usa a pediatria de um hospital ou PS como centro de conveniência. Vai nos horários que pode, após ver a novela, sem ter uma real necessidade e sai com a falsa sensação de resolução, em vez de fazer uma prevenção periódica.

Hirschheimer afirma que um novo fenômeno se intensificou neste setor: o chamado "burnout" (distúrbio psíquico-depressivo) tem ocorrido em vários profissionais.

— Vem aquela sensação de impotência, com o pensamento: por mais que faço os problemas não se resolvem. A demanda aumenta e a pressão também.

Hirschheimer afirma que a média salarial de um pediatra em um hospital privado, trabalhando 50 horas por semana e com plantões noturnos aos finais de semana é de R$ 15 mil por mês, quantia que está defasada. Mesmo esse salário, como teto máximo, não tem atraído novos profissionais para a atividade.

— Outras especialidades chegam a receber duas ou três vezes mais do que isso.

Assalto e estresse

O estresse entre os pediatras tem aumentado na mesma proporção que as filas. O murmúrio abafado dos corredores frequentemente é cortado por berros, tumultos, socos em balcão e até agressões a funcionários. Há 20 anos na profissão, uma pediatra, que preferiu não ter o nome divulgado, está de licença por ter sido assaltada em pleno atendimento em um posto de saúde.

Traumatizada, ela precisa de um tempo para se recuperar. E afirma que a crise está no atendimento público e no privado, com algumas diferenças.

— Em locais próximos à periferia, da rede pública, a violência fica mais presente. O medo é em relação à integridade física, já que há pais armados, incidência de assaltos e ineficiência da segurança pública. Nos hospitais particulares, também há pressão. Um pai que não é atendido, que paga convênio ou é conhecido do médico, se sente traído. Não entende que há falta de investimentos e a demanda é enorme. Vê o seu filho como o bem mais precioso, fica egoísta e só tem um objetivo: ser atendido. 

A médica, que atua no interior paulista, afirma que a maioria das reclamações são dos pais cujos filhos não requerem urgência no atendimento. Ela já chegou a fazer 35 atendimentos em quatro horas, número bem maior do que os 16 apontados como limite pela OMS (Organização Mundial de Saúde) no mesmo período.

—Ouvi inúmeras ofensas em hospital particular. É difícil manter o equilíbrio. É um desrespeito muito grande quando um pai não compreende a situação desumana do pediatra. Quando isso acontece, é uma sensação muito desagradável de estar sendo invadida. 

Mudança no modelo

Para piorar, nem todas as operadoras fazem o pagamento completo da puericultura, acompanhamento minucioso de todos os aspectos da criança: motor, comportamental, convivência, sono, atividades, etc. Trata-se de um processo amplo e demorado e a remuneração é relativa apenas à consulta inicial. Isso desestimula, na opinião de Ferreira Jr., a formação de novos pediatras.

Ele também vê um outro lado nessa questão da "conveniência", citada pelo presidente da SPSP. Segundo Ferreira Jr., muitos pais, aflitos com o mal-estar do filho, os levam ao hospital justamente para ter a certeza de que não é algo grave. E por não terem outra alternativa.

—Se o pai ou a mãe pudesse ligar para o convênio e marcar na manhã seguinte, não iria para o hospital. Mas a data disponível mais próxima em geral é para alguns meses adiante. Então ele (a) leva para o PS. Não é apenas por conveniência. Há um misto de conveniência, falta de acesso a outros recursos e a insegurança de alguns pais que não são tão descolados quanto outros, mas não têm culpa por isso.

O professor ressalta que, nos atuais tempos, sem um acompanhamento duradouro, as consultas no PS acabam sendo mais impessoais, já que o médico não conhece o histórico da criança.

—Por isso são pedidos exames que na maioria das vezes não resolvem. E se a criança tiver de voltar no dia seguinte, será com outro médico, mas pegando a mesma fila, ou até maior.

Como solução, ele afirma que deve ser criado, por parte dos hospitais, um outro modelo de financiamento.

—A remuneração não seria mais por unidade de serviço e procedimentos, mas por algo como resultado do atendimento. Os PS deveriam pagar melhor os pediatras, em função da resolução em cada atendimento. Dos planos, se o pediatra recebesse uma melhor remuneração, que compensasse, ficaria disponível mais tempo para um atendimento completo à criança.

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Mas nem tudo está perdido. Ferreira Jr. ressalta que o médico de família começa a retornar para acalmar a situação. Muitos convênios estão restaurando este reverenciado personagem, que, diferentemente de antes, recebe dos planos para atender em domicílio, evitando superlotações.

— Esta é uma tendência. Antigamente, havia o médico de família, mas o acesso à saúde era para muito poucos. Coisas mudaram para melhor também. É verdade que classes média e alta eram as atendidas em domicílio e hoje pegam filas. Mas o médico de família, por causa disso, começa a voltar aos poucos.

A crise provoca o retorno do médico de família, nestes tempos tecnológicos e de aumento populacional. São tempos de multiplicação da espécie e da Ciência. Tempos de fila e de fúria. Então ele irá à casa da criança, num fenômeno para reverter a própria doença da pediatria.

Tocará a campainha, agora com porteiro eletrônico, sem ter recebido aquele telefonema tão pessoal e humano. Era um pedido misturado com convite. Uma consulta e ao mesmo tempo visita. Hoje, nada disso. O médico poderá realizar até um bom atendimento. Ministrará o mais moderno remédio. E se despedirá, provavelmente, sem ter tempo para saborear aquele velho cafezinho.

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