Envelhecer é novo desafio para pessoas com deficiência intelectual
Laerte Olavo realiza atividades na APAE e é um dos exemplos que mostram a importância de se buscar autonomia, com a evolução da Medicina
Brasil|Eugenio Goussinsky, do R7
Eles já passam dos 40, 50, 60 anos. Com o correr dos dias, o envelhecer natural é composto de desafios. Para uma parte significativa da população brasileira, a perda de reflexos e de memória tem o agravante da deficiência intelectual, muitas vezes diagnosticada na infância.
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Em 1982, aos 18 anos, Laerte Olavo Gramini Júnior (hoje com 54 anos), passou a frequentar a APAE (Associação de Pais Amigos dos Excepcionais) em São Paulo, por encaminhamento escolar, por causa de uma deficiência intelectual adquirida após o nascimento.
No local, orientados por psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, entre outros especialistas, os vários participantes frequentam grupos de terapia, condicionamento físico, música, linguagem corporal e atividades físicas.
Por trás da calvície e do corpo de adulto, imperam em Laerte um olhar e uma fala espontânea de menino. Dócil, ele responde às perguntas "em sua primeira entrevista na vida" em tom orgulhoso.
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Sentado na pequena sala, ele volta a cabeça um pouco para baixo, humildemente. Mas essa timidez não impede que ele imponha seu sorriso a cada momento, de forma natural. Todo o esforço em torno dele, apesar dos percalços, o levaram a ainda acreditar no ser humano. Ele fala sobre suas dificuldades sem constrangimento.
"Eu tento sempre ver se melhoro um pouco. Pensava que tinha que melhorar nas coisas, que eu era volúvel. Tentava participar e parava. Hoje já participo de muitas coisas, mas ainda estou aprendendo. Hoje tento me observar melhor", conta.
Orgulho da evolução
A deficiência de Laerte foi detectada quando ele tinha sete anos. Em geral, a situação é revelada na escola, quando há uma dificuldade de aprendizado perceptível, o que foi seu caso.
Na conversa, percebe-se que a dificuldade se manifesta quando ele entende pouco o sentido da pergunta e se atém mais a aspectos concretos, talvez induzido pelas exigências formais dos tempos da escola.
E o trabalho dos atuais profissionais busca o desenvolvimento cognitivo também no campo da subjetividade, que leva a uma maior interação da pessoa com seu próprio universo.
Neste sentido, Laerte mostra que aprendeu a se orgulhar e ter consciência da sua evolução. Cada dia é como se fosse o de uma nova conquista. Otimista, lembra que já fez de tudo nesta vida, desde a escola regular na infância (CIAM), até quando começou a ter um aprendizado mais direcionado à sua condição. E dispara contando histórias sobre tudo o que já fez.
Ele chegou a trabalhar como office boy e auxiliar em gráficas. Atualmente não trabalha, realizando somente as atividades no Serviço de Envelhecimento, situado na unidade centra da APAE de São Paulo.
Laerte recebe o apoio dos familiares, principalmente da mãe, sra. Emília Antônia, e dos irmãos mais novos Renato e Alberto, que o deixa diariamente na instituição. Ele costuma voltar de ônibus.
"Faço pintura, artesanato, vitral. Já fiz marcenaria. Participei de vários campeonatos de natação e ganhei muitos. Gosto de dançar, ganhei um presente de uma amiga na dança. Adoro ir ao cinema. Gostei do filme do Chacrinha. E também comecei a escrever poesias", conta.
Método do carinho
Quando fala sobre suas atividades, sua mente parece ir se libertando. Laerte vai se lembrando de como era a vida dele no passado, lá na rua Dr. Bacelar, na Vila Mariana, onde cresceu. Hoje mora em Mirandópolis, próximo à Praça da Árvore, também na capital paulista.
"Quando eu era criança eu gostava de brincar. Não tinha calçada, era tudo de barro e areia. Ah, esqueci de dizer que adoro festas também. Me visto de Papai Noel no Natal. Só não gosto de ginástica. Mas tem que fazer, né?"
Surgem em suas memórias, se misturando a tudo que ele falou, imagens de quando ele se via diferente dos outros, com dificuldade de aprender. Tem a lembrança que foi a mãe e a tia quem o ajudaram e que, com o método do carinho, conseguiu aprender.
"Eu não conseguia passar nos testes. Minha mãe e minha tia tiveram que me dar aula para passar na escola."
Foi o pai, já falecido, quem o ensinou a pegar ônibus da APAE para casa.
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"Ele me disse, vai nesta rua e pega este ônibus para chegar em casa. Me mostrou os lugares direitinho e hoje eu sei como fazer."
Quando fala do futuro, fica claro que as atividades que ele realiza, tiveram êxito. Ele te uma visão otimista, não pensa em preocupações.
"No futuro vou estar velhinho. Tenho três sonhos. Um é aparecer na TV. Já apareci na plateia do Raul Gil, todos me reconheceram, ele foi legal comigo..."
"E os outros dois sonhos, Laerte?", insistem os presentes.
"Escrever um livro e fazer um filme sobre minha vida. Já estou escrevendo um livro."
Preconceito e autonomia
Laerte volta, então, a falar sobre sua própria situação. E não guarda rancor em relação ao preconceito que ele já vivenciou.
"Não ligo. No cinema vejo muitas pessoas com deficiência, de muletas, que falam libra. Não ligo muito. Já teve algumas vezes. Uma vez fui em um aniversário e um primo me chamou de gordo. E eu falei que ele também era baixinho", conta.
O aumento da longevidade das pessoas com deficiência intelectual, a evolução da Medicina e os próprios trabalhos de inclusão trazem consequências, como doenças na velhice.
É aí que entra a necessidade que tem sido vista como novidade para os especialistas. Fazer com que as pessoas tenham qualidade de vida e ganhem cada vez mais autonomia para não sofrerem com a perda maior: a da esperança.
Nos corredores da APAE, em São Paulo, a semana é preenchida pelas atividades das quais Laerte participa. A entidade, fundada em 1958, tem se preocupado cada vez mais com essa questão, segundo Karyny Nascimento Ferro, psicóloga da instituição, uma ONG que tem parcerias com o poder público.
"Este tipo de trabalho nos faz ter outros olhares e perceber que não existe só um jeito de ver as coisas. Eles nos ensinam que cada ser humano tem sua maneira de observar e realizar suas próprias descobertas. Este trabalho ainda precisa de mais visibilidade. Pessoas com deficiência também envelhecem e o aumento da longevidade e da inclusão trouxe esses desafios. Existem consequências que precisam de políticas públicas, para se lidar com situações como doenças e perda da capacidade cognitiva. É uma questão social", afirma.
Estímulo profissional
O trabalho com pessoas como Laerte também é um estímulo para a terapeuta ocupacional Ana Paula Lucena Spagnolo.
"É um aprendizado diário, surgem potenciais muitas vezes ocultos. É uma oportunidade deles vivenciarem isso e também nos ensinarem com suas descobertas. O Laerte poderia passar despercebido por uma escola regular que não tivesse essa atenção. Tudo isso também ajuda ele a terem autonomia, com oficinas nas quais acabam encaixando suas atividades preferidas, que os ajudam a se desenvolver."
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Um brilho faísca suavemente do olhar quando ele descreve o que é a vida. Laerte, então, mostra que sua capacidade de entendimento, no fundo, vai muito além dos limites intelectuais. E apresenta a mistura mais pura de alegria e tristeza, fonte de onde vem sua poesia.
"A vida é uma coisa maravilhosa. Conhecer pessoas, aprender, perceber que muitos têm as mesmas doenças, tentar orientar. É um presente de Deus, tudo é uma arte, uma flor é como uma pintura, mas muito maior, é uma arte que vem da natureza, é a maior de todas as artes, a vida é assim."
Depois, ele pergunta para sua terapeuta, já voltando pelo corredor, ao lado das salas de atividades. "Falei bem?" Ao receber a aprovação natural, novamente se desenha em seu rosto aquele sorriso discreto, mas evidente. Laerte está satisfeito com a conquista. Agora ele já tem uma nova história para contar.