Mais de 60% dos países que toleram uso de drogas registram aumento do número de presos, diz estudo
Pesquisa do ITTC mostra que permitir uso é insuficiente para combater prisões em massa
Brasil|Diego Junqueira, do R7
Permitir o uso de drogas é uma forma eficaz de combater o encarceramento em massa e a superlotação das cadeias?
Um estudo sobre 36 países que adotaram leis mais tolerantes com usuários de drogas revela que, em 22 deles (ou 61% do total), o número de pessoas presas aumentou após a adoção dessas políticas.
O levantamento “Política de Drogas e Encarceramento” foi realizado pelo ITTC (Instituto Trabalho, Terra e Cidadania), uma organização de direitos humanos que presta assistência a populações com problemas na Justiça. O estudo será lançado nesta quinta-feira (7), em São Paulo, em forma de infográfico.
Foram avaliados 36 países que despenalizaram, descriminalizaram ou legalizaram o uso de drogas, sobretudo a maconha.
Despenalizar é quando o consumo continua sendo crime, mas o usuário não pode sofrer uma pena restritiva — é o caso do Brasil. Descriminalizar é quando o consumo deixa de ser crime — exatamente o julgamento que está no STF, paralisado desde setembro. E legalizar é o que aconteceu no Uruguai e em alguns Estados norte-americanos, em que o consumo é permitido, mas segue determinadas regras.
Dos 36 países avaliados, 21 são europeus e 15 americanos: Argentina, Bélgica, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Holanda, Honduras, Hungria, Irlanda, Itália, Luxemburgo, México, Paraguai, Peru, Portugal, Reino Unido, Venezuela, Alemanha, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, República Tcheca, Romênia, Ucrânia, Costa Rica, Croácia, EUA, Jamaica e Uruguai.
Dos 15 países americanos, 11 tiveram aumento do encarceramento após adotarem política tolerante com o usuário: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México, Paraguai, Peru e Venezuela.
Já dos 21 europeus, 11 viram aumentar o número de presos: Bélgica, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Portugal e Reino Unido.
Costa Rica, Croácia, EUA, Jamaica e Uruguai não tiveram o encarceramento analisado porque as mudanças em suas legislações são recentes.
De acordo com uma das coordenadoras do levantamento, a internacionalista Lucia Sestokas, tolerar o consumo de drogas não foi o que provocou o aumento do número de presos.
O que acontece, diz ela, é que essa política lida somente com um personagem da temática, o usuário, sendo “insuficiente” para evitar que mais pessoas sejam presas.
— As pessoas que estão sendo presas entram para o tráfico como um trabalho, entram para sanar um problema econômico pontual ou crônico, de geração e complementação de renda.
Dessa forma, diz Lucia, as políticas de drogas precisam ser ampliadas e estarem atreladas "a políticas sociais, econômicas e de geração de renda”.
Em Portugal, por exemplo, a descriminalização do uso ocorreu em 2001, mas o aumento do encarceramento só aconteceu em 2008 e 2009, em razão da crise econômica.
A Lei de Drogas do Brasil vai completar dez anos em 2016. De lá para cá, a lei foi responsável por um aumento na população carcerária brasileira, que saltou de 400 mil para mais de 600 mil no final de 2014, segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça.
A lei está prestes a ser alterada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que está analisando o Recurso Extraordinário 635.659, que pode levar à descriminalização do usuário.
Em setembro passado, os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram pela descriminalização do porte de maconha. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
R7 – Tolerar o consumo de drogas foi decisivo para aumentar o encarceramento?
Lucia Sestokas – Não. Isso é exatamente o que a gente não pode afirmar. Flexibilizar a política de drogas não resulta em aumento de encarceramento. O que a gente pode afirmar é que, se você flexibilizar a política de drogas de forma restrita, ou seja, só para algumas condutas, como só para o uso, não tem efeito de desencarceramento.
R7 – A discussão no STF vai nesse sentido, de descriminalizar o uso de drogas. Isso então é ineficaz?
Não necessariamente ineficaz. A questão é que não pode parar aí. Despenalizar e descriminalizar o uso é ótimo, é um avanço. Mas você tem que pensar além, na totalidade das condutas. No Brasil, em teoria, você tem o uso despenalizado: a pessoa que é usuária pode ser processada, pode ser condenada, mas não pode receber pena de prisão, pode receber outras penas. E isso não quer dizer desencarceramento. Pelo contrário. No Brasil, desde 2006, quando se adotou essa nova política, a gente acompanhou um aumento de quase 50% da população carcerária.
R7 – Por quê?
Porque a pena para tráfico endureceu muito. Ainda que as pessoas não sejam presas pelo uso, elas são presas pelo tráfico, e o tráfico nada mais é do que um trabalho, é uma forma de geração e de complementação de renda.
R7 – Descriminalizar o uso pode ser considerado, então, uma política discriminatória social e economicamente?
É uma política que talvez não ajude na desigualdade do Brasil. Quando você fala que essa política é ineficaz, não é necessariamente isso, é que é insuficiente. É ótimo que despenalize ou descriminalize, mas a discussão não pode parar aí.
R7 – Como no Uruguai?
O Uruguai meio que chutou o balde nesse processo de primeiro despenalizar, depois descriminalizar e por último legalizar. Ele já legalizou, com o uso e o cultivo controlados pelo Estado. O Uruguai não legalizou o comércio, ele regulamenta de alguma forma nessa lógica de dar condições ao usuário.
R7 – E quais foram os resultados no Uruguai?
As regulações mais avançadas, como a do Uruguai, são mais novas, após 2013, então ainda não existem muitos dados sobre [o impacto no] encarceramento. Lembrando que o Uruguai legalizou só para maconha, os outros usos continuam criminalizados.
R7 – No STF também se discute a descriminalização somente para a maconha.
Assim como é insuficiente falar de flexibilização só para uso, é insuficiente falar de flexibilização só para maconha, principalmente porque tem um caráter muito social. Quem é que está usando maconha e quem é que está usando as drogas mais estigmatizadas, como o crack? O crack vai continuar sendo criminalizado. Então é bom que descriminalize a maconha, mas é insuficiente. O que se pode afirmar é que isso com certeza será prejudicial se vier acompanhado de um endurecimento para outras drogas.
R7 – A lei de drogas do Brasil está completando 10 anos. O que você destaca como avanço e retrocessos da lei?
Duas coisas principais são positivas: primeiro a despenalização do uso, que é um avanço do que se tinha antes, que era a criminalização total; segundo é que a ótica sobre a pessoa usuária muda um pouco, passando da segurança pública para a saúde e para a assistência social — pelo menos na teoria.
De lado negativo, com certeza, é o endurecimento de pena para tráfico. Se eu for pensar nos impactos da lei nesses dez anos, o que temos muito é essa dicotomia entre a pessoa usuária e traficante: o direito ao uso é muito restrito, que é o direito daquela pessoa de classe média alta, que é branca, que vai fazer o uso em que o Estado não vai interferir.
Agora, a pessoa que está na periferia não tem direito ao uso, então ela vai cair sim na malha de Justiça e o uso dela vai ser “patologizado”.
R7 – Como assim “não é permitido o uso na periferia”?
Na periferia temos um borramento de fronteira entre o que é usuário e traficante. O que vemos na periferia é que, a pessoa sendo usuária ou não, ela vai ser enquadrada como traficante, então vai cair na malha da Justiça. Se isso acontece e ela conseguir provar que é só um usuário, ela ainda vai ter que responder a um processo criminal, e isso tem impactos muito negativos para essas pessoas. Já o usuário de classe média alta não vai ser julgado, não vai a juízo, a polícia o descarta de primeira porque ele não vai ser enquadrado como traficante.
Veja como exemplo o caso que está em discussão no STF. A pessoa que está sendo julgada foi pega com uma quantidade ínfima de maconha, mas precisa se defender para alegar que é usuária.
R7 – Se essas medidas são insuficientes, qual o caminho para uma política séria de drogas que não seja injusta com a periferia?
Já é complicado termos o Judiciário legislando. Mas é lógico que o Judiciário tem uma oportunidade única de falar para o Legislativo que eles têm que tratar essa questão a partir disso. “Vamos descriminalizar o uso e vocês fazem uma política a partir disso”. Mas quem tem que fazer essa política não é o Judiciário. A gente defende que essa política tenha o maior cunho social possível, mas o modelo, ainda temos que pensar.
R7 – Existe o risco de, a partir da descriminalização no STF, termos um aumento ainda maior do encarceramento no Brasil?
Daqui para frente o que vamos fazer são apostas. Não sabemos quais vão ser as consequências, só saberemos depois de adotar. O que a gente sabe é que alguns exemplos já não deram certo. A gente sabe que descriminalizar só o uso, por exemplo, vai ter quase nenhum impacto na periferia, nas populações mais vulneráveis. Descriminalizar só maconha, a mesma coisa. A gente tem pensar qual é o modelo e quem será beneficiado por esse modelo.
R7 – Mas qual a importância que deverá ter, nesse modelo, a situação social e econômica das populações mais vulneráveis?
Se a gente hoje vê que o elo mais frágil da política de drogas são as populações de rua, populações negras, pessoas que moram na periferia e mulheres, especialmente, se a gente sabe que essas populações hoje vão pagar com a liberdade (sendo presas) ou com a vida (pelo genocídio das polícias), então temos que ter uma atenção especial e pensar o que elas estão precisando. Que política temos de adotar para essas pessoas não continuarem sendo mortas e presas?
E o comercio de drogas é uma coisa que temos de parar de ignorar ou de demonizar. O ITTC trabalha com populações presas desde 1997, e o que observamos é que as pessoas que estão sendo presas entram para o tráfico como um trabalho, elas entram para sanar um problema econômico pontual ou crônico, de geração e complementação de renda.