Novo marco de saneamento é alvo de ofensiva no STF e no Congresso
Medida abriu espaço para a iniciativa privada atuar com mais força na exploração do setor e instituiu o regime de licitações
Brasil|Do R7
Sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em julho do ano passado, o novo marco legal do saneamento volta a ser alvo de ofensivas, que passam por uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) e um projeto de lei na Câmara dos Deputados.
No Supremo, mais de 20 empresas estatais que prestam hoje serviços no setor querem a volta da possibilidade de fechar os chamados "contratos de programa", diretamente com as Prefeituras e sem licitação - contrariando uma das exigências mais importantes da nova lei.
Já na Câmara, projeto do deputado Dr. Leonardo (Solidariedade-MT) estica alguns prazos determinados pelo novo marco. O texto tramitará na Casa em regime de prioridade, status definido em despacho do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de fim de maio. Segundo o documento, a proposta está sujeita ainda a ter apreciação conclusiva pelas comissões da Casa, sem precisar passar pelo plenário.
Desde que entrou em vigor, o novo marco abriu espaço para a iniciativa privada atuar com mais força na exploração do setor e institui o regime de licitações para a escolha das empresas que prestarão serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, limpeza urbana e reciclagem de lixo. Neste período, quatro leilões já foram realizados, entre eles, o da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae), que rendeu R$ 23 bilhões em outorgas.
No STF, o novo marco foi questionado pela associação que representa as empresas públicas de saneamento (Aesbe). A contestação chegou à Corte um dia antes de o governo publicar um decreto que, na prática, pode fazer com que ao menos dez companhias estaduais do setor percam contratos por não terem viabilidade financeira para fazer frente às exigências da lei - como garantir o fornecimento de água potável a 99% da população e coletar e tratar o esgoto de 90% dos domicílios até 2033. Hoje esses índices são de 83,7% e de 54,1% (coleta de esgoto) e 49 1% (tratamento), respectivamente.
Essas empresas públicas, que hoje dominam a prestação de serviços de saneamento, precisam incluir até 31 de março de 2022 as novas metas de universalização nos contratos que fecharam com as Prefeituras. Mas, para manter os negócios, precisam comprovar que têm estofo financeiro, de acordo com as regras do decreto. Se não tiverem, perdem os contratos ou precisarão recorrer à desestatização.
Desde o ano passado, as estatais questionam esse prazo, que poderá ser estendido até 30 de novembro do próximo ano caso a proposta do deputado Dr. Leonardo seja aprovada.
As companhias públicas reclamam ainda do fato de o governo ter atrasado em cerca de oito meses a publicação das regras. O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) decidiu que só iria publicá-las após o Congresso analisar veto presidencial que proibiu as estatais de renovarem por mais 30 anos contratos fechados sem licitação. A proibição foi mantida pelos parlamentares em março.
Esse cenário de expectativa sobre o que iria acontecer - se o veto seria ou não mantido - é a justificativa dada pela Aesbe por não ter acionado a Justiça antes, mas cerca de dez meses após a sanção do marco. Partidos de oposição apresentaram ações no STF logo após a publicação da lei. "Construímos ao longo do tempo (a ação). Até então, existia um veto pendente, esperávamos que o Congresso revertesse e mantivesse o que foi acordado", disse o presidente da associação, Marcus Vinicius Neves.
Neves alegou que a ação não procura discutir as metas impostas pela lei. Segundo ele, o que a Aesbe quer é resgatar a possibilidade de as Prefeituras fecharem contratos diretamente com as companhias públicas (contratos de programa) sem um processo de licitação.
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Prazos
Além de esticar a data para regularizar os atuais contratos, a proposta do deputado também dá mais um ano, até 15 de julho de 2022, para os Estados estabelecerem as unidades regionais de saneamento básico e para as Prefeituras instituírem instrumentos de cobrança dos serviços de resíduos sólidos.
Para justificar a proposta, Dr. Leonardo afirmou que o impacto social causado pela pandemia "apresenta repercussões profundas e duradouras no âmbito de políticas sociais". "É a iminente necessidade de revisões de prazos e adequações dos projetos e cronogramas, para que sejam viáveis e efetivos em suas aplicações no futuro próximo", disse o deputado.
Ex-presidente da Sabesp, Gesner Oliveira criticou movimentos que buscam combater o decreto ou alongar prazos do marco legal. "Se os Estados não tiverem condições, eles podem pensar em parcerias público-privadas, pensar na privatização da empresa."
Questionado, o MDR considerou o "prazo exequível"; sobre ações judiciais, a pasta não fez comentários.
Estatais descumprem critérios do marco do saneamento
Pelo menos dez companhias públicas de saneamento básico não atendem a um ou mais critérios exigidos pelo novo marco legal do setor e pelo decreto que regulamenta a lei, publicado no início do mês pelo governo federal. O levantamento, ainda preliminar, foi elaborado pela GO Associados, considerando dados de 22 empresas estaduais publicados no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
A nova lei, em vigor desde julho do ano passado, exige que as empresas prestadoras de serviço comprovem ter capacidade econômico-financeira para viabilizar a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033. O decreto editado recentemente é responsável por definir a metodologia dessa comprovação - ou seja, funciona como uma regra de corte das companhias que poderão ou não continuar atuando.
Para quem já tem contrato em vigor e pretende mantê-lo, esses requisitos precisam estar incorporados no negócio até março de 2022. De acordo com a regulamentação, as companhias têm até dezembro deste ano para apresentarem requerimento de comprovação de capacidade econômico-financeira à entidade reguladora responsável.
A GO Associados calculou que as companhias públicas do Rio Grande do Norte, Santa Catarina, Alagoas, Maranhão, Amazonas, Pará, Piauí, Roraima, Rondônia e Amapá não atendem a todos os critérios da "etapa 1" do decreto - que prevê o cumprimento de índices mínimos dos indicadores econômicos-financeiros. Nessa fase, são observados pontos como o grau de endividamento, a suficiência de caixa e o retorno sobre patrimônio líquido da empresa.
Sócio da GO Associados e ex-presidente da Sabesp, Gesner Oliveira acredita que algumas dessas empresas têm chance de melhorar sua posição até o fim do prazo e manterem seus contratos. Mas isso dependerá de um esforço de recuperação. "Precisa de um choque de gestão", disse. Oliveira acrescenta que se a melhora econômica e financeira da companhia pública não for possível, só com uma arrumação interna e com o auxílio do Estado. Essas empresas ainda poderão recorrer a parcerias público-privadas e ao processo de privatização, a fim de não perderem seus contratos.
"Alternativamente, as companhias estaduais poderão passar por um processo de desestatização, com requerimento a ser apresentado para o regulador, demonstrando a contratação de estudos para a desestatização até janeiro de 2022 e autorização legislativa para até dezembro de 2022, com conclusão da desestatização até março de 2024", aponta o estudo da GO Associados.
A análise considerou apenas os requisitos da primeira etapa de comprovação definida pelo decreto. As empresas que atendem a esses critérios precisam mostrar, numa fase seguinte, que também têm condições de cumprir o plano de investimentos. Segundo o levantamento, estariam de acordo com as exigências da etapa 1 as companhias públicas da Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. A GO Associados considera o estudo preliminar porque os dados usados, de 2015 a 2019, foram captados do SNIS e não são auditados, diferentemente das informações que serão prestadas pelas empresas.
‘Exclusão’
Questionado sobre o número levantado, o presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Marcus Vinicius Neves, reconheceu que algumas companhias públicas passam por dificuldades financeiras, mas destacou que a comprovação de capacidade não pode ser um "modo de exclusão" e criticou pontos do decreto. Ele defende que o processo de universalização do saneamento passe pela união de esforços entre os recursos públicos e privados. "Existe um processo alongado para ser construído. Mas existem algumas questões desse decreto que precisam ser bem avaliadas. Tem ‘n’ situações que estamos discutindo e analisando", disse ele, acrescentando que ainda não há uma estimativa própria da Aesbe sobre quais empresas não cumpririam os requisitos do decreto.
Por sua vez, entre os dez Estados citados pela GO Associados, já existem iniciativas para melhorar o nível de investimento em saneamento. É o caso de Alagoas, que em outubro do ano passado concedeu os serviços de água e esgoto da região metropolitana de Maceió (AL). O certame foi considerado um sucesso, com valor de outorga pago pela empresa privada BRK de R$ 2 bilhões. O Amapá é outro. No fim de maio, o governo estadual publicou edital do leilão de concessão de serviços de água e esgoto para áreas urbanas em todos os 16 municípios do Amapá, atualmente prestados pela companhia pública. Os investimentos estão estimados em R$ 3 bilhões.
O Estadão procurou as dez empresas citadas pelo estudo como incapazes de atender aos requisitos do decreto. A CAERN (Rio Grande do Norte) afirmou, em nota, que em 2020 passou a atender aos quatro critérios exigidos pela lei. A Agespisa (Piauí) afirmou que tem condições de atender às exigências do marco e criou uma comissão para avaliar o que precisa ser feito para se adequar a elas. A Casan (Santa Catarina) afirmou que o estudo não leva em conta "todas as variáveis contábeis". As demais empresas não responderam até o fechamento desta edição.