Conheça histórias surpreendentes que marcam os hotéis de Brasília
Do agricultor que ergueu três hotéis após ser barrado no Nacional ao carrinho de café atirado da janela, setor é rico em curiosidades
Brasília|Eduardo Marini, do R7
Brasília, joia da arquitetura moderna, maior área do mundo aprovada como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, das Nações Unidas, é hoje uma jovem senhora de 61 anos. Perto das outras capitais estaduais, é menina. Ainda assim abriga, no tempo relativamente curto para uma cidade, uma das maiores redes hoteleiras do país, com mais de 300 unidades, ao lado de Fortaleza e atrás apenas, na ordem, de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte.
Maiores e, pelas urgências sempre furiosas do poder, também rica em passagens curiosas, tensas, saborosas ou nem tanto. A maioria temperada por conflitos, malícias e situações inusitadas vividas por políticos, empresários, artistas e personalidades que orbitaram a Presidência da República, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados.
Em busca das histórias, o R7 visitou hotéis das asas Norte e Sul, que concentram quase todas as unidades, e conversou com profissionais experientes do setor, testemunhas da maioria suprema desses episódios históricos – na seca e, a quatro paredes, muitas vezes animadíssima capital do país.
Hotéis como Eron, Brasília Palace, Aracoara e Nacional, este fechado temporariamente desde 2020, estão entre os pilares icônicos da hospedagem desbravadora da capital. Todos ricos em história e, claro, passagens intrigantes protagonizadas por seus hóspedes, moradores e funcionários.
A história da hotelaria brasiliense guarda episódios surpreendentes mesmo fora de seus quartos, recepções e restaurantes. Como a do fazendeiro produtor de banana e outros alimentos Joaquim Barbosa, que um dia chegou em trajes modestos para se hospedar no Nacional.
Ao estilo dos vendedores das boutiques brasileiras nariz em pé, teve o check-in recusado num misto de soberba e falso verniz de educação. Deu uma banana (a gestual, bem entendido) aos recepcionistas e tascou firme: “Ah, é? Pois vou construir um hotel bem mais moderno do que esse para mim e meus futuros hóspedes”. Levantou logo três: Nações, Alvorada e América. Pronto.
O empresário da construção civil e ex-prefeito de Padre Bernardo (GO) Wayne do Carmo Faria, morto em 2017, era também proprietário do Aracoara, hotel onde o paulista Carlos Paranhos construiu boa parte de sua carreira como gerente. Faria enriqueceu instalando meios-fios e realizando, com suas construtoras, obras como o Banco Central, a Praça Portugal, no Setor de Embaixadas Sul, e anexos de ministérios.
Em 1981, para a inauguração do edifício em Brasília, o BC encomendou ao Aracoara a produção de um coquetel para mil pessoas, a ser servido na nova sede. Empolgado, o então jovem Paranhos não economizou diante dos representantes do banco: jogou a proposta de rega-bofe lá para o alto, a exemplo das linhas e curvas jogadas ao ar na capital pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Ofereceu lagosta, champanhe, vinhos finos, acompanhamentos, camarões às cascatas.
Os representantes do BC não ofereceram resistência. Após o susto por um cheiro ruim que dava a ilusão de exalar da comida antes do início, problema logo esclarecido, o coquetel rolou lindo e solto. O ex-gerente só percebeu que havia construído uma arapuca para si mesmo no dia seguinte, ao ligar para acertar o pagamento. “Disseram que seria feito pelo próprio senhor Faria em função de um crédito existente entre as partes”, lembra Paranhos. “Respirei fundo e pensei: “bom, minha maior venda até agora foi feita justamente para o patrão. Levarei uma chamada e ainda não sei o que vai ser da comissão”, lembra às gargalhadas. O perdão foi diluído em semanas até vir por completo.
A suíte presidencial do Hotel Nacional, inaugurado no primeiro aniversário oficial de Brasília, em 21 de abril de 1961, e atualmente fechado, certamente não está hoje entre as mais luxuosas de Brasília. Mas ainda é a maior. São 380 metros quadrados, com sala de estar, reunião, jantar e quatro suítes. A Rainha Elizabeth, do Reino Unido, o rei da Noruega, Haroldo V, os ex-presidentes Jimmy Carter, dos Estados Unidos, Charles de Gaulle, da França, e Cavaco Silva, de Portugal, e a ex-primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, estiveram por lá.
Encravado na Quadra 1 da Asa Sul, com 247 apartamentos espalhados por dez andares, o Nacional entrou no cenário hoteleiro para se consolidar como principal centro de contato da Corte. E assim foi, com vários políticos e empresários importantes ocupando seus espaços inclusive como moradores, até os ventos impiedosos da decadência invadirem seus aposentos sem cerimônia, pela porta ampla da recepção. Seus móveis antigos, carpetes coloridos e geringonças descolocadas no tempo, como máquinas de polir sapatos, foram trocadas pelas novas gerações por apelos mais modernos oferecidos nas novas redes.
Vendido a empresários brasilienses no final de 2018, após várias tentativas fracassadas de leilão, por R$ 93 milhões, metade do valor definido na avaliação inicial, para tapar parte do buraco de dívidas, o Nacional fechou as portas em 2020, desalojando moradores importantes, entre eles o presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e ex-deputado Roberto Jefferson.
Ainda houve tempo para outros episódios tristes antes de passar a chave na entrada principal. Um deles foi o suicídio, em um de seus quartos, de um cubano enviado ao Distrito Federal numa das levas do programa Mais Médicos, lançado em 2013 pela ex-presidente Dilma Rousseff.
O Eron Hotel, fundado por Eron Alves de Oliveira, vendido em 2008 e rebatizado como Airam Brasília pelo novos dono (Maria, nome da matriarca do comprador, ao contrário) e hoje se chama DF Hotel, foi um abrigo de estrelas no Distrito Federal. Sua trajetória foi marcada pela mistura de políticos, empresários e artistas - muitos artistas. Os apresentadores Flavio Cavalcanti, Silvio Santos e Xuxa, o pesquisador Albert Sabin, os cantores e compositores Milton Nascimento, Jorge Benjor e Gilberto Gil, o humorista Chico Anysio, os quatro Trapalhões e as atrizes Maria Scheider, Cristiane Torloni e Maitê Proença, o craque Zico e o Rei Pelé estão entre as mais de uma centena de personalidades que rechearam de autógrafos e mensagens carinhosa o mais antigo livro de ouro do lugar, mostrado ao R7. Por muitos anos, o hotel foi também sede do concurso de Miss Brasil.
“Os protagonistas das melhores histórias sempre foram os políticos, empresários, executivos e famosos”, adianta ao portal uma das raposas com longa passagem pela administração do lugar. As feijoadas de sábado reuniam gente importante no restaurante do Eron. Fãs dela, o presidente eleito e não empossado Tancredo Neves e o ex-presidente da Câmara Ulysses Guimarães batiam ponto sempre que possível.
O orgulho do hotel com a clientela peso pesado do restaurante era exibido nas paredes com fotografias dos figurões recebidos. Após passar o olho pela galeria, um deputado assíduo reclamou por não ter encontrado uma imagem sua. Insatisfeito com a explicação do maître, levantou-se, arrancou uma das fotos do ganho, olhou-a com desprezo pela última vez e a atirou pela janela. Antes, teve tempo para pensar em conveniências políticas e juntar o individualmente útil ao desagradável: escolheu para lançar em giros a foto em um deputado rival brilhava sorridente ao lado de assessores.
Em outra ocasião, um diretor da extinta rede de televisão Manchete recebeu no Eron a visita surpresa da mulher. Só que, dessa vez, o executivo tinha, no conforto doce e seco de seu quarto, a companhia animada de uma namorada. “Tive que inventar uma história de nova proibição para impedir a esposa dele subir enquanto um funcionário, como um atleta olímpico, passava tudo dele para outro quarto. No final deu certo, mas foi um sufoco”.
Saias justas do tipo não eram raras no Eron, lembra o profissional experiente. As reuniões na suíte imperial do Eron organizadas por um empresário da região para receber pessoas e fechar negócios eram famosas entre os funcionários. Pela generosidade das gorjetas mas, sobretudo, pelo time de moças sempre recrutado para, como a propósito gosta de dizer o também cliente Benjor, animar a festa.
Em outra ocasião, um político que acabaria sendo presidente da República após o regime militar revoltou-se, na portaria, ao ser impedido de subir com uma beldade que se recusou a preencher a ficha. “Não sei o que ele havia consumido, mas estava visivelmente fora de controle. Gritou com funcionários, arremessou coisas para todo lado mas, no final, controlamos a situação”, lembra a fonte.
Um empresário do interior ganhou de presente dos amigos uma diária numa suíte do Eron para a primeira noite de lua-de-mel. Era costume no hotel preparar quartos para a ocasião. Assim foi feito. Num engano fatal, o recepcionista enviou o casal para outra habitação – em obras e sem vaso sanitário. “Eles acharam que era brincadeira dos amigos, essa coisa de despedida de solteiro, e passaram a noite sem reclamar. Não sei como se viraram, se é que me entende”, diverte-se a fonte. O pior veio depois, ao ligarem para pedir desculpa ao empresário. “Nunca recebemos tanto chumbo grosso como o dele naquele dia. De brincadeira não havia nada, só erro nosso”.
O prédio do Eron foi o primeiro da América Latina a ter elevadores externos panorâmicos. O ex-diretor lembra da visita do atual presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, em uma de suas várias passagens pelo cargo. “A equipe dele nos obrigou a tapar o elevador do primeiro ao último andar” conta. “Na porta da suíte, a segurança de Ortega servia de cobaia provando as refeições antes dele começar a comer”.
Havia espaço também para malícia por parte da administração. Como em meados da década de 1980, na recepção a dezenas de aliados do político e militar Mário Andreazza, do então Partido Democrático Social (PDS), que perdeu para Paulo Maluf a convenção para disputar a presidência da República com Tancredo em 1984.
“Colocamos, sem avisar, um litro de uísque escocês em cada quarto reservado. Alguns funcionaram diziam ser cortesia do partido. Foi uma alegria geral”, lembra. “Quando apresentamos a conta na lua, os organizadores reclamaram muito, não queriam pagar, mas argumentamos que as garrafas foram colocadas sem compromisso, para dar conforto. No final ficou por isso mesmo e eles pagaram. Contrariados, mas pagaram”.
O Brasília Palace, aberto ao público em 1958, dois anos antes da inauguração oficial da cidade, é outro ícone dos anos românticos. São famosas as fotos do ex-presidente Juscelino Kubtschek, que mandou construir o Distrito Federal, à frente de um painel do artista Athos Bulcão, cercado de assessores e jornalistas, ouvindo pelo rádio a vitória do Brasil sobre a Suécia final na final da Copa de 1958, primeiro título mundial da Seleção, na manhã de 29 de junho daquele ano, um domingo.
Um dia depois, o Palace seria inaugurado. Durante a construção, o arquiteto Oscar Niemeyer, criador do projeto do Plano Piloto ao lado do urbanista Lúcio Costa, cobrou de seus auxiliares o motivo da demora na construção da piscina. Ouviu que ainda não existia um desenho para ela. “Ele pegou um papel, rabiscou algo imediatamente e disse: “se o problema é esse, não existe mais”, conta João André da Silva, que entrou no hotel em 1965, como paneleiro na madrugada, e o deixou na gerência geral, em 1978. A bela piscina oval, uma das joias mais delicadas da arquitetura local, estava ali, projetada em segundos.
O jurista Luiz Octavio Pires e Albuquerque Gallotti, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1984 a 2000 e presidente da casa entre 1993 e 1995, morou no Palace por anos, sempre na mesma suíte. Todos os dias, a mesma mesa, a nove, era reservada para ele até 13h no restaurante do hotel e também na Churrascaria do Lago, em frente, na época a melhor de Brasília. “Se o doutor Gallotti não estivesse sentado numa duas mesas de número nove pontualmente até uma da tarde, a brigada sabia que ele estava do outro lado e que poderia liberar a sua”, lembra Silva.
Não era o único comportamento metódico do ministro. As gorjetas eram dadas impecavelmente todos os dias, sempre no mesmo valor, um pouco menor no café da manhã em relação ao almoço. Na companhia da esposa, oferecia sempre exatamente o dobro. Um auxiliar cuidava de buscar no banco as reservas para as gratificações, sempre trocadas em valores que facilitassem a tarefa. “A disputa na brigada para ver quem iria ocupar o setor da mesa nove era feroz todos os dias”.
Um dos fundadores do PMDB (o ex-gerente preferiu não dar o nome) certa vez foi levado preso do Palace durante o AI-5. Silva tentou amenizar a situação na portaria, os oficiais não gostaram e... o levaram junto para um quartel a poucos metros de distância do hotel. Horas depois, chegou um coronel do Exército e disse: “Com ele (o político), vocês poderão ficar o tempo que quiserem ou precisarem, mas João André irá comigo. Preciso dele no hotel”.
Surpresas criadas por triângulos amorosos são, por sinal, um clássico dos hotéis. Brasília não é exceção. Em um deles, diante da sur-pre-saaaaa da chegada da mulher ao Palace, um hóspede vestiu-se com roupas da namorada, que estava no quarto, enrolou um pano na cabeça, tapou o rosto com as mãos, passou pela esposa na recepção e fugiu como rato de gato. Os ouvidos pela reportagem juram que a mulher, colocada estrategicamente em um canto, não percebeu.
Em meados da década de 1970, Silva estava na recepção conversando com funcionário quando todos ouviram um barulho seco. Era o carrinho do café da manhã, servido em um dos quartos, espatifando-se no chão com pratos, talheres, copos, ovos mexidos e outras delícias e engrenagens. Era a reação irada de um hóspede, empresário e político do interior, descontente com o que havia sido servido.
O episódio faz lembrar a performance da atriz e cantora americana Ava Gardner no Hotel Glória, no Rio, nos áureos tempos da cidade como capital federal. Após uma carraspana de birita nas dimensões da Baía de Guanabara, e de uma discussão quente com o acompanhante da ocasião, Ava lançou o que conseguiu erguer no quarto pela janela, na calçada vizinha da exuberância do Aterro do Flamengo. Nos dois casos, felizmente, ninguém estava embaixo para, a exemplo da artista, virar notícia.
“Brasília tinha uma hotelaria majoritariamente familiar. A partir dos anos 180, passou a testemunhar a consolidação das grandes redes internacionais”, atesta Leonardo Monteiro, gerente geral do Windsor Brasília, na Asa Norte. Filho de uma família modesta, o carioca foi formado profissionalmente no mitológico Copacabana Palace por uma senhora inglesa, ex-funcionária do Palácio de Buckingham, residência oficial da monarquia do Reino Unido.
Monteiro tem até hoje orgulho de ter sido reconhecido por ela e os colegas como “o melhor limpador de sanitários” do hotel. “A única coisa que não mudará nunca é a produção desses fatos inusitados”, completa ele. Mesmo porque os grandes fatos, intrigas e fofocas não cessarão nunca na capital do país – e parte deles acabará sempre desembocando em quarto, corredor, restaurante ou recepção de hotel.