Distritais pedem apuração sobre erros em reconhecimento facial
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa também pediu esclarecimentos à direção-geral da Polícia Civil do DF
Brasília|Fabiano Bomfim, da Record TV, e Alan Rios, do R7, em Brasília
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF discutiu, na segunda-feira (17), dois supostos erros em laudos de reconhecimento facial. O órgão enviou dois ofícios: um ao Ministério Público, com solicitação de investigação sobre as possíveis falhas, e o outro à Polícia Civil do DF, em busca de mais informações. Nos documentos, deputados distritais pedem dados técnicos sobre o sistema e indagam qual regulamentação permite a aplicação do método.
Os dois casos foram revelados com exclusividade pelo R7. O primeiro foi o do pedreiro José Domingos Leitão, de 52 anos. Ele foi preso em casa, no município de Ilha Grande, no Piauí, e transportado numa aeronave para o DPE (Departamento de Polícia Especializada), em Brasília (DF), onde ficou detido por três dias. O segundo é o de Eduardo Wendel Pereira do Santos, de 23 anos, acusado de assaltar um ônibus na capital federal.
Em nota, a Polícia Civil diz que "realiza suas atividades periciais no âmbito da comparação facial, seguindo estritamente os protocolos internacionais preconizados, não havendo revisão de outro instituto, por tratar-se de competência do órgão". E afirma, ainda, que "é rigorosa na emissão e revisão de seus resultados no exercício de suas atribuições periciais, cumprindo todos os protocolos necessários para garantia da segurança jurídica da persecução penal".
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa, deputado distrital Fábio Félix (PSOL), considera os casos graves e diz que a cobrança sobre as duas instituições é necessária. Ele argumenta que o equipamento que rastreia fotos para identificar suspeitos possui um "algoritmo feito por pessoas brancas numa sociedade estruturada pelo racismo". O parlamentar acredita que falta regulamentação para o uso dessa tecnologia.
'Disseram que eu era traficante', diz pedreiro preso injustamente
Policiais civis do Distrito Federal acordaram José Domingos Leitão, de 52 anos, bem como sua família, com chutes nas portas da casa, gritos e ordens para calar a boca. Morador de Ilha Grande, no Piauí, o pedreiro foi preso às 5h de 7 de outubro de 2020, após um programa de reconhecimento facial o confundir com o verdadeiro autor de um crime em Brasília. O erro na coleta de dados digitais do programa fez com que José Domingos fosse preso pelos agentes sob a acusação de usar documento falso para receber o cartão de crédito de uma loja de departamentos do Distrito Federal. "Ou eu ia ficar preso pelo resto da vida ou eles iam me matar no caminho", diz ele sobre o que pensou ao ser algemado.
Eu sofri%2C porque fui julgado pelos vizinhos. Perdi muitos serviços%2C porque disseram que eu era traficante.
José estava em casa com a esposa, o sobrinho dela e a sogra no momento da prisão. "Todo mundo se assustou, levantando, correndo. Até que a minha esposa conseguiu abrir a porta, e eles já foram entrando, mandando todo mundo sentar, todos com arma na mão. A minha família ficou traumatizada. Ninguém disse nada. Minha sogra, que é cardíaca, passou mal. Precisou tomar água com açúcar. Assim mesmo, eles não estavam nem aí", diz.
Confundido com assaltante de ônibus
No dia 22 de outubro de 2019, por volta das 13h, o ônibus da linha 0.900 da Viação Marechal, que liga Taguatinga ao Plano Piloto (DF), foi assaltado na altura da Estrutural. Nesse momento, segundo a advogada de Eduardo Wendel Pereira dos Santos, de 23 anos, apontado como suspeito de ter cometido o roubo, seu cliente estava no cartório do Guará, dando esclarecimentos sobre suas atividades durante a liberdade provisória. Um suposto erro no laudo de reconhecimento facial, que comparou as imagens de circuito interno do coletivo com fotos de um banco de dados da polícia, o levou a ser identificado como o autor do crime e corroborou para um inquérito policial. Hoje, ele aguarda decisão do juiz da 2ª Vara Criminal de Brasília para saber se será condenado ou absolvido da acusação de roubo.
Durante a investigação, a advogada criminalista Nayara Caixeta conseguiu autorização judicial para uma nova análise. Na petição, ela questionou o fato de terem sido verificados apenas os rostos das imagens — e não as tatuagens, por exemplo. "Bastaria o mero cotejo dessas imagens para identificar que não se tratava da mesma pessoa, tanto pelas características físicas quanto pelas tatuagens que Eduardo apresenta, no braço e nas mãos", disse.
O segundo laudo complementar constatou, pelas tatuagens, que não se tratava da mesma pessoa. "Critérios adotados de forma ampla e minuciosa pelo Instituto de Criminalística contestaram, em grau máximo, os dois laudos." Wendel já foi condenado a 24 anos de prisão por três roubos. Se for punido por mais esse crime, poderá ter até 15 anos somados à sua pena. Para a advogada, ele deve ser condenado apenas pelos delitos que efetivamente cometeu, sem nenhuma dúvida quanto à autoria. "Eduardo Wendel deve ser condenado e punido por um crime que ele cometeu, e não por uma acusação infundada", afirma.
No processo do assalto ao ônibus, apesar de a inconsistência no primeiro laudo pôr em dúvida a suspeita contra Eduardo Wendel, o Ministério Público manteve a denúncia porque parte das testemunhas o apontou como o autor do crime.
A mãe de Eduardo Wendel Pereira dos Santos, Iona Pereira de Jesus, 47 anos, diz que estava com o filho no cartório no momento em que houve o assalto. "A gente foi à escola deixar o meu outro filho, de 9 anos. Ele não podia faltar, porque era uma semana de prova. A gente voltou para casa, eu peguei minha bolsa, os documentos, pegamos o metrô e descemos na cidade do Guará, para ir ao fórum", conta.
Iona diz desejar que o filho pague apenas pelos crimes que realmente cometeu. "Não é justiça fazer pessoas pagarem por um crime que não cometeram. A Justiça tem que ter cuidado com essas investigações através de foto de reconhecimento facial", afirmou.
Para a mãe do acusado, é importante dar luz a casos como esse, "para que outras vítimas não paguem por crimes que não cometeram" e famílias não passem o que ela passou.
O que dizem os papiloscopistas
A Presidente da Associação Brasiliense de Peritos Papiloscopistas, Maíra Lacerda, disse que os profissionais estão à disposição para esclarecimentos à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa.
Ela negou a existência erros. Esclareceu que o software de identificação não foi usado para elaborar o laudo de Eduardo Wendel Pereira dos Santos, de 23 anos, mas uma perícia de comparação facial. "A imagem do suspeito indicado foi confrontada com a imagem do obtida do local de crime", disse.
Lacerda explica que não houve reanálise do laudo do Instituto de Identificação pelo Instituto de Criminalística. "Caso houvesse necessidade de revisão do trabalho técnico, ele seria feito dentro do próprio órgão", complementou.
Segundo ela, um laudo de perícia se propõe a esclarecer os fatos investigados e não funciona como uma prova isolada e desconexa da investigação policial. "Um laudo por si só não condena e não indicia ninguém. Ele vai se juntar a um conjunto probatório em prol do esclarecimento dos fatos", explicou.