Três pessoas denunciam crime de stalking por dia no Distrito Federal
De abril a agosto deste ano, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) já contabilizou 242 casos de stalking
Brasília|Hellen Leite, do R7, em Brasília
Era para ser só mais um atendimento na agenda de Ana* naquele junho de 2020. Logo que começou a pandemia de Covid-19, a psicóloga viu crescer o número de pessoas com sintomas de ansiedade e depressão. Foi assim que sentiu que precisava ampliar o serviço que prestava no consultório. A solução para responder à demanda crescente veio com os atendimentos online e por telefone. O que ela não esperava era que esse serviço de acolhimento lhe rendesse meses de telefonemas indesejados, visitas ameaçadoras e mensagens incessantes no WhatsApp.
Essa prática, chamada de “stalking”, foi tipificada em abril deste ano no Código Penal como crime de perseguição, que ocorre quando as tentativas de contato são exageradas. No meio digital, caracteriza-se quando o autor passa a ligar repetidas vezes, envia mensagens constantes, faz comentários continuados nas redes sociais e cria perfis falsos para driblar eventuais bloqueios. No Distrito Federal, de abril a junho deste ano, a Polícia Civil (PCDF) registrou 242 ocorrências desse tipo, uma média de três denúncias por dia. Oitenta e cinco por cento das vítimas são mulheres, e mais da metade, 56%, está dentro de um contexto de violência doméstica.
No caso de Ana, os contatos com o paciente deveriam ser apenas no ambiente virtual, mas acabaram passando disso. Na primeira sessão, por telefone, a psicóloga percebeu que o rapaz dava rumos inusitados à conversa e insistia em falar sobre temas sexuais. Na sessão seguinte, começaram a surgir os elogios. Na terceira, ele já sabia detalhes da vida de Ana que assustaram a profissional.
“Com o tempo, ele passou a me ligar de números diferentes e com frequência. Então eu soube que ele era atendido no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) e procurei a psicóloga do local, que me contou que o paciente tinha histórico de perseguições contra as profissionais. Ela, inclusive, havia sido perseguida por seis meses”, relata.
Com a vida vigiada, Ana precisou mudar a rotina. Já não ficava até mais tarde no consultório, filtrou pacientes do sexo masculino da lista de atendimento e instalou câmeras de segurança em casa. “Me assustou quando ele começou a passar na frente da minha casa e me adicionar em vários perfis nas redes sociais. A sensação é de que você está sendo vigiada e que alguma coisa ruim pode acontecer. É horrível”, afirma.
Denúncias no DF
A história de Ana é uma entre muitas. Por medo de retaliação e por ter uma ligação profissional com o perseguidor, a psicóloga decidiu não fazer a denúncia à polícia, mas só em setembro dois casos de stalking levaram os autores à cadeia na capital federal.
Em 3 de agosto, a Polícia Civil prendeu uma agente da própria corporação por perseguir o ex-namorado. Segundo consta no processo que corre no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), o homem chegou a receber 98 ligações no mesmo dia, além de diversas ameaças.
Catorze dias depois, um homem, de 61 anos, foi preso em flagrante por stalking contra uma psicóloga. A vítima contou que o idoso iniciou o tratamento psicológico no fim do ano passado, em um consultório de Sobradinho, e acabou "se apaixonando" por ela. Ao perceber a situação, a psicóloga disse que decidiu encerrar as sessões, em julho deste ano, e encaminhou o paciente para ser atendido por outro profissional.
Desde então, de acordo com relatos da vítima, o paciente passou a persegui-la, enviando mensagens, criou perfis falsos na internet e chegou a comprar um chip para falar com ela, já que a especialista havia bloqueado o contato dele em todas as redes sociais. "Mesmo contra a vontade da vítima, o homem foi até o consultório dela algumas vezes, deixando cartas com dizeres: ‘O maior fracassado não é aquele que fracassa a primeira vez, e sim aquele que não tenta a segunda'", contou o delegado que investiga o caso, Thiago Hexsel, da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam).
Águimon Rocha, professor de direito penal processual da Universidade Católica de Brasília (UCB), esclarece que um dos avanços que a lei que modificou o Código Penal trouxe foi a possibilidade de prisão por até três anos das pessoas que cometem o stalking. Em sua modalidade simples, sem agravantes, a pena é de reclusão de seis meses a dois anos, quando o crime é considerado de menor potencial ofensivo – isso significa que é possível uma transação penal e que o autor não seja preso.
“Existe a possibilidade de o juiz não impor a prisão, mas determinar outras medidas cautelares. Por exemplo, monitoramento eletrônico. A intenção da norma é que, ao tipificar esse crime, evita que crimes maiores aconteçam, por isso as medidas cautelares podem ser outro meio para proteger a vítima”, comenta.
Segundo o professor, as vítimas de crimes na internet podem realizar a captura de tela das mensagens para denunciá-los, mas, além disso, outras fontes podem ajudar a comprovar o crime de stalking.
“Prints de conversas, cópias de páginas de redes sociais e testemunhas também podem ser usadas como provas. Não existe só uma forma de provar um crime. Quando a pessoa vai à delegacia, ela apenas noticia um crime. Cabe à polícia produzir elementos para instaurar um inquérito”, esclarece.
Cyberstalking
Mesmo antes de o stalking virar crime no Brasil, a ONG SaferNet já mapeava vítimas e ofereceu um canal de ajuda. De 2015 e 2020, foram 116 casos de vítimas de "cyberstalking" que buscaram ajuda da SaferNet. A ONG diz que as mulheres eram maioria entre os atendidos, 75,9%.
Outro levantamento, organizado pela ONG Plan International Brasil, revelou que oito em cada dez jovens brasileiras já sofreram assédio pela internet. De acordo com o estudo, 77% das brasileiras já foram vítimas de ataque na internet, em comparação a 58% das mulheres de outros países. Das entrevistadas, 99% disseram ter acesso a plataformas digitais, das quais o Facebook foi o ambiente campeão em números de assédio, com 62% dos casos, seguido pelo Instagram e, por último, ficou o WhatsApp.
A maior parte das agressões pelas redes sociais vieram de estranhos, 47%, e usuários anônimos foram responsáveis por 38% das situações. A pesquisa da ONG Plan International Brasil contou com a participação de 14 mil meninas de 15 a 25 anos em 22 países, entre elas 500 jovens brasileiras.
As agressões mais frequentes foram linguagem abusiva e insultos, constrangimento pela aparência física e ameaça sexual. Mais de 40% das participantes alegaram estresse mental e emocional com impactos comportamental e na autoestima como consequências reais dos problemas virtuais.
*Ana é um nome fictício usado para preservar a identidade da vítima.