Cautela, Tupperware e cadeira gamer: o juiz à frente do júri da Kiss
Orlando Faccini Neto manteve o tom de voz com poucas oscilações e dedicou a atuação aos familiares das vítimas do incêndio
Cidades|Fabíola Perez, do R7, em Porto Alegre (RS)
O único momento em que Orlando Faccini Neto tirou a máscara de proteção contra a Covid-19 foi às 18h da sexta-feira (10), quando retornou da sala secreta à cadeira gamer trazida de sua casa para o prédio do Foro Central de Poto Alegre, no Rio Grande do Sul, para ler a sentença dos então acusados do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria. A exceção aberta para a ausência da proteção parecia ter um motivo importante: a clareza da mensagem a ser passada.
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Ao fim de uma extensa lista de agradecimentos, o magistrado citou os parentes das vítimas da tragédia: “Aos familiares das vítimas não dedicarei palavras, dediquei-lhes....”. As mãos trêmulas de Orlando ajeitaram o microfone pelo menos duas vezes, um curto pigarro o interrompeu. O rápido gole de água, em um copo pedido antes mesmo do início da leitura, deu certo alívio à secura das palavras que viriam. Após uma curta pausa, retornou ao microfone: "...o meu trabalho de juiz".
O momento mais aguardado dos últimos dez dias do maior Tribunal do Júri do Rio Grande do Sul e um dos maiores do país sensibilizou, ainda que por alguns segundos, o magistrado que presidiu o julgamento dos quatro réus condenados por homicídio doloso pela tragédia que deixou 242 mortos e 636 feridos. Denunciado pela falta de palavras, Orlando Faccini Neto voltou rapidamente ao controle da presidência do júri depois bater o calhamaço de papel em sua mesa e anunciar que a sentença, enfim, seria longa.
Retomado o tom de voz, ele falou às dezenas de câmeras que formavam uma barreira e o separavam da plateia do plenário. “Declaro condenados os réus Elissandro, Mauro, Marcelo e Luciano.” Como quem se preocupa em dar uma espécie de satisfação às famílias que o acompanharam pelos corredores do prédio, Orlando passou os olhos por alguns trechos da sentença. “O direito penal não há de voltar os olhos apenas àquele que delinquiu, senão que lhe cabe a finalidade de ajustar as expectativas da comunidade evitando frustrações e descréditos que afetam confiança no sistema da Justiça.”
Nem mesmo a cadeira gamer parecia dar certo conforto à leitura das palavras. Conforme passava pelas páginas, ele se ajeitava insistentemente com o peso de quem estava prestes a concluir um momento histórico. E seguia: “No caso de perda de entes como no presente, a pena criminal há de comunicar aos familiares, pais e mães enlutados o grau de respeito que lhes devota o Estado, de maneira que arriscar o esquecimento desses dramas pessoais gerados pela prática de um crime implicaria o oposto: uma demonstração de que ordem jurídica não compreende a vítima, o sujeito enlutado, seus familiares com o devido respeito e consideração”.
Pelos minutos subsequentes, Orlando se ocupou de ler frases, por vezes poéticas, por vezes jurídicas, que narrassem o sofrimento dos pais que havia testemunhado naquele plenário, sobre a culpabilidade dos réus apontada pelos jurados após longas horas de debates e sobre o comportamento de algumas vítimas, que definiu como “heroico” quando comparado por ele ao dos réus em meio ao horror.
Além do alívio às famílias na plateia, que clamavam por justiça, a leitura da sentença parecia dar certo respiro ao juiz, que dias antes revelou à reportagem não estar conseguindo “abstrair”. Nos dez últimos dias, Orlando adotou uma rotina de iniciar a manhã com telefonemas e mensagens para a mãe e a mulher, Bruna de Witt Faccini. Eram os únicos momentos em que poderia falar com a família com alguma tranquilidade. Na maior parte do dia, o presidente do Tribunal do Júri teve de manter um controle exíguo do tempo em razão dos longos depoimentos que se seguiriam no plenário.
Às 9h, sentava-se na cadeira gamer, alongava os dedos, fazia consultas e anotações em um livro de direito penal que repousava em sua mesa enquanto interrogava alguma testemunha ou sobrevivente a cerca de um ou dois metros à sua frente. Concentrado nas palavras dos depoentes, nas argumentações do Ministério Público e dos advogados de defesa, Orlando disse que não teve momentos de descontração nesse período e que se dedicou somente à leitura e releitura das páginas do processo. “Não estou conseguindo abstrair”, disse antes de iniciar uma das sessões.
O tom de voz tranquilo, sempre mediado pelas mãos retas na altura do rosto, como se pedissem equilíbrio e ponderação, chamou a atenção da plateia logo nos primeiros depoimentos. “Esse juiz é muito bom, muito didático”, diziam alguns dos presentes ao plenário. Do começo ao fim do júri, Orlando pediu repetidas vezes “cautela” e “harmonia” no tribunal. Quando não foi atendido, o magistrado não hesitou em intervir. Na tarde da quinta-feira (2), por exemplo, Faccini Neto considerou o comportamento do advogado de defesa de Elissandro Spohr, o Kiko, “apelativo e desnecessário”.
O advogado chamou Kiko ao centro do auditório para, frente a frente com uma sobrevivente, perguntar se ela tinha “ódio” do acusado. Prontamente, o magistrado o interrompeu: “Isso não é adequado porque nós estamos em um sistema de Justiça que busca, efetivamente, racionalizar aquilo que as vítimas sentem. Eu considero, digo isso muito respeitosamente, mas vai ficar registrado que considero isso apelativo e desnecessário”, afirmou.
Em outra discussão com o advogado Jader Marques, dessa vez sobre o tempo estipulado para o intervalo, Orlando ouviu as reivindicações do defensor de Kiko e contra-argumentou: “Minha comida está em uma Tupperware gelada. Traga sua comida”, disse sob aplausos da plateia. “Isso, sim, é proselitismo. O senhor está jogando a plateia contra a defesa”, retrucou Marques. O tom de voz de Faccini Neto teve de se elevar mais ainda na sexta-feira (3), quando logo no primeiro depoimento do dia um bate-boca marcou o início dos trabalhos.
A discussão ocorreu durante o depoimento de Daniel Rodrigues, gerente da loja que vendeu o artefato pirotécnico do incêndio na boate Kiss. Ao notar o silêncio da testemunha para responder, o advogado de defesa do produtor Luciano Bonilha, conhecido pela atuação performática e agressiva nos tribunais, gritou: “Tu tem que responder”. O juiz, então, ordenou que abaixasse o tom. “Aqui não é competição de quem grita mais alto”, advertiu Orlando. Como a discussão não parou, o juiz advertiu Severo: “Hoje não tá legal. Da próxima, o senhor não fica mais no plenário”, declarou ao pedir o intervalo.
A mesma preocupação com o tempo também foi demonstrada em relação às vítimas. Faccini Neto procurou dar certo conforto aos sobreviventes que se sentavam no centro do auditório, exauridos em depoimentos que, por vezes, chegaram a se estender por cinco horas. “Vamos prestar mais atenção ao depoimento das vítimas”, dizia o juiz ao perceber que defesas e Ministério Público repetiam perguntas aos depoentes. “Mas não era a última pergunta?”, cobrava Faccini Neto quando alguma das partes tardava em encerrar a arguição.
A qualquer indício de bate-boca entre acusação e defesa, o magistrado intervinha: “Acredito que estamos antecipando a etapa dos debates”, dizia. Ao perceber a insistência das partes com temas ou perguntas saturadas, mais uma vez, Faccini Neto se posicionava: “Estamos gastando uma enormidade de tempo para falar sobre coisas que não dizem respeito ao dia 27 de janeiro”. Não foram poucos os depoimentos de vítimas ou testemunhas em que defesas e acusação foram acusadas de usar o tempo de perguntas para antecipar suas teses aos jurados. “Não se pode instrumentalizar vítimas para antecipar os debates. Vamos fazer o que deve ser feito, inquerir a vítima”, alertava Orlando.
O quinto dia de júri teve uma pausa atípica. No domingo (5), o intervalo para o lanche ocorreu às 17h para que os jurados pudessem assistir ao segundo tempo do jogo Corinthians e Grêmio, válido pela 37ª rodada do Campeonato Brasileiro. “Os jurados vão fazer um lanche às 17h. Eu vou viabilizar, se todos concordarem, que eles vejam, ao menos, o segundo tempo do jogo para dar uma relaxada”, afirmou. Um dia depois, incomodado com as notícias publicadas, Faccini Neto esclareceu que ele não assistira à partida.
Corintiano, disse que ficaria em seu gabinete, provavelmente revisitando o processo. “Eu não vou ver jogo, os jurados pediram para ver. Eu vou estar recolhido no meu gabinete [...] Convenhamos, é domingo, vamos fazer um intervalo das 17h às 18h e aproveitar isso para o lanche. Foi programado, e depois vamos trabalhar. Estamos aqui já há cinco dias”, justificou.
Além de citar referências literárias, como o poeta português Luís Vaz de Camões, Faccini Neto trouxe ao plenário diversas passagens musicais. Orlando, que toca violão, mencionou João Gilberto, Lemmy Kilmister e Jimi Hendrix durante as sessões. Em um dos depoimentos em que se discutia o uso de espumas para isolamento acústico, o juiz comentou: “Se fosse um show do João Gilberto, certamente o conforto acústico seria exigido”.
Em outro momento, durante um questionamento do advogado de defesa de Luciano Bonilha, Gustavo Nagelstein, ao técnico de som da banda Gurizada Fandangueira, Venâncio Anschau, o juiz, uma vez mais, citou referências musicais. “Ele [Luciano] não era, sempre que escuto isso, até pra desanuviar, ele não era como Lemmy Kilmister, que foi roadie do Jimi Hendrix e depois se tornou o grande astro do Motorhead”, disse. Em seu perfil nas redes sociais, Orlando compartilha trechos de vídeos em que aparece tocando violão e cantando clássicos do rock. Em um dos depoimentos, ele inclusive divide suas preferências musicais com um dos sobreviventes. Ao dizer que não iria à Kiss na noite do incêndio porque não gostava do estilo musical, Faccini Neto perguntou-lhe: “E qual sua preferência?”, e o sobrevivente respondeu: “Eu sou do rock”. O magistrado completou: "Eu também”.
Nas redes sociais, ele, que é formado em direito, tem mestrado em direito público e doutorado em ciências jurídico-criminais, compartilha preferências literárias, séries e momentos de lazer com a mulher. Entre as últimas séries de que mais gostou, recomenda Maid, que trata da história de uma jovem mãe que consegue sair de um relacionamento abusivo. “Baita série”, diz. A última publicação do magistrado paulista traz a mensagem: “Faço o melhor que sou capaz só para viver em paz”. As palavras, provavelmente, fazem referência à presidência do júri.
Às dezenas de câmeras que o enquadravam na sexta-feira (10), Orlando registrou que a magnitude do caso exigia reflexão. “É um caso de expressão nacional para refletirmos sobre o Tribunal do Júri. Há diagnósticos realizados acerca da demora dos julgamentos decorrentes de causas estruturais e que demandam mudanças legislativas”, disse. Longe de sua mesa e dos microfones, ponderou que o júri foi “um bom trabalho”. Acrescentou: “Conseguimos concluir o julgamento, que era a expectativa que eu tinha, e espero que ele não se prorrogue, não se faça necessário uma nova mobilização. Eu sou juiz, e um juiz tem que aprender a respeitar as decisões dos tribunais”.