Em meio ao luto, sobrevivente da Kiss e enfermeira se apaixonam
Emanuel Pastl foi hospitalizado após o incêndio na boate, que deixou 242 mortos, e assim conheceu a esposa, Mirélle Bernardini
Cidades|Do R7
Mesmo em meio a tragédias que destroem famílias e situações que chegam a enlutar comunidades, como o incêndio que vitimou 242 pessoas na boate Kiss há oito anos, pode surgir uma narrativa feliz. Foi assim com Emanuel Pastl e Mirélle Bernardini.
Emanuel foi conduzido ao hospital da Ulbra, em Canoas, com queimaduras no corpo, principalmente no braço direito, e precisou ser internado após inalar a fumaça tóxica, a exemplo de outros 636 feridos naquela madrugada de 2013. Filho de um bombeiro aventureiro que gostava de levar os filhos para velejar e por diversas vezes sofreu com problemas como tempestades, quebra do mastro, encalhamento ou ficar à deriva, Emanuel manteve a calma durante o início das chamas e conseguiu se salvar. Mas a fumaça fez com que fosse intubado durante dez dias.
Após esse período, passou aos cuidados da equipe de pele. A enfermeira responsável por tratar das queimaduras de segundo e terceiro grau foi Mirélle.
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Naquele momento, ela vivia um inferno pessoal: assimilar a morte do pai, Ediér Bernardini, assassinado no município de Agudo, entre Santa Maria e Santa Cruz do Sul. O avô, de 90 anos, entrou em um período depressivo após a morte do filho e parou de se alimentar. Morreu 90 dias depois.
Enlutada, Mirélle mergulhou de cabeça no trabalho. Ela se esforçou à exaustão no tratamento dos feridos na boate e, após a alta dos pacientes, tirou um período de férias. Foi quando Emanuel deixou o hospital para se cuidar em casa.
Os dois trocaram contatos para que Mirélle pudesse auxiliá-lo com os curativos. Eles passaram a conversar sobre outros assuntos para além dos cuidados médicos. Ambos, fragilizados, se apoiaram, desabafaram e encontraram, um no outro, um suporte.
"Após as férias, ela retornou para o hospital de Canoas, onde eu morava e ainda moro. Nós nos encontramos, começamos a sair mais vezes e nos apaixonamos. Então veio o namoro, o casamento, em janeiro de 2018, e estamos juntos até hoje. Temos uma filha, a Antônia, que nasceu em setembro de 2019", conta Emanuel, com um semblante muito mais leve, alegre e sorridente do que o mostrado durante o seu depoimento no julgamento do caso Kiss, em Porto Alegre, na quinta-feira.
Segundo Mirélle, "foi uma união por fatos difíceis". "Quando ele apareceu no hospital, eu ainda estava 'digerindo', de luto. Fomos conversando sobre as depressões da vida, sobre como é difícil perder alguém, se reerguer. Eu até citei nos meus votos do casamento que no momento mais difícil das nossas vidas a gente se conheceu e se reergueu juntos", relembra ela.
E foram juntos que deixaram o Foro Central de Porto Alegre, quando Emanuel voltou para casa. Durante o depoimento, ele deveria participar apenas como testemunha, um sobrevivente, mas, devido à formação de engenheiro especializado em prevenção contra incêndios, fez quase um relato técnico a juiz, promotores do Ministério Público, assistentes de acusação e advogados de defesa.
"Outras Kiss, estatisticamente, vão acontecer. Depois da Kiss, ainda houve incêndios como o do Hospital do Badim, no Rio (2020), do Ninho do Urubu (2019), do prédio da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (2021), e do Museu Nacional (2018). O Brasil é um dos países com mais mortes decorrentes de incêndios. A raiz do problema é muito ampla, não é uma só. A legislação, por exemplo, é confusa. No Rio Grande do Sul, ela nem está completamente pronta."
Ciclo
O casal vê o julgamento como um encerramento, porém se sente injustiçado em outra situação: o júri do assassinato do sogro de Emanuel, pai de Mirélle, ainda não ocorreu. "O inquérito foi rápido. Em 30 dias já tinham o pessoal que assassinou meu pai e em 43 dias determinaram prisão preventiva. Mas já foram feitos três júris e nenhum foi concluído. Depois que começou a pandemia, está parado. A Justiça é importante para a gente fechar um ciclo", diz ela.