'Estava debaixo do fogo sem poder fazer nada', diz vocalista
Réu afirma que teve chance de apagar o princípio do incêndio; diz que tentou usar um extintor, que não teria funcionado
Cidades|Fabíola Perez, do R7, em Porto Alegre (RS)
O terceiro réu a ser ouvido pelo Tribunal do Júri do caso da boate Kiss nesta quinta-feira (9) foi o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos, 41 anos. Ele disse ao juiz Orlando Faccini Neto que teve uma chance de apagar o incêndio que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos, mas não conseguiu utilizá-la. “Terminou a música do Naldo, senti que uma coisa me cutucou as costas. Era meu irmão Márcio, que disse “tá pegando fogo”. Quando eu olhei, tinha uma bola de fogo, tipo uma chama”, lembra.
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“Quando eu olhei, tinha um rapaz vindo na minha direção, larguei o microfone e peguei o extintor na mão. Gritei ‘fogo, fogo, sai'. Quando me deram o extintor, eu ia apagar. Na minha cabeça, eu ia apagar. Eu tive uma chance de apagar o fogo, e não consegui. O extintor não funcionou. Alguém gritou 'vai vir mais extintor', e não veio”, relatou.
O réu afirma que tentou ativar o extintor, mas, segundo ele, o aparelho não estaria funcionando. “Eu entrei em desespero em cima do palco. Eu vi que o Luciano [produtor da banda] me empurrou e pegou uma garrafa de água e jogou, aumentou mais ainda. Quando eu peguei o extintor, ele não tinha lacre, tinha um pino, no que eu apertei não saía nada. Mais duas pessoas pegaram o mesmo extintor. Eu disse ‘sai’, na intenção de vir mais extintor. Olhei para trás e não tinha nada que eu pudesse pegar para combater o fogo. Não me deram essa chance. Fiquei debaixo dele e não podia fazer nada. Estava com as mãos fechadas sem poder fazer nada, e vendo aquele desespero. As pessoas correndo, querendo sair, e eu não podia fazer nada”, afirmou.
Sequelas
O ex-vocalista disse que, quando trabalhava e sentia falta de ar, se escondia, porque tinha medo de ser reconhecido como ex-integrante da banda Gurizada Fandangueira.
Ele lembrou que, após o incêndio, passou um tempo sem informar à médica que cuidava dele que era um integrante da banda. "Depois de um tempo, eu disse à doutora quem eu era. Naquele momento eu entendi por que eu não tinha contado a ninguém”, diz. “Ela queria me levar para a mesma ala onde eram tratados os sobreviventes da Kiss. Eu disse ‘eu não vou’”, afirma. “Eu tinha vergonha de ir, tomei um monte de remédio e não fiz exame.”
Marcelo disse ainda que, recentemente, todos em sua casa foram diagnosticados com Covid-19. A mãe dele foi internada e depois de um tempo morreu.
Marcelo relata que enfrenta dificuldades financeiras, problemas de saúde e psicológicos, e que o dia 27 de janeiro de 2013 "nunca saiu" dele. “Para mim, é um dia após o outro, não faz mais sentido para mim”, afirmou, respondendo aos questionamentos de sua advogada de defesa.
Artefatos pirotécnicos
Marcelo afirmou que era comum o uso de artefatos pirotécnicos em shows. “Todo mundo sabia, não era surpresa para ninguém”, disse. Ele afirmou que a banda Gurizada Fandangueira se apresentou duas vezes após a reforma na casa noturna. “Eu fui ficar sabendo dessa reforma depois da tragédia. Era muito escuro lá para perceber se tinha diminuído ou não [o teto].” O réu disse que usou a mão esquerda para segurar o artefato pirotécnico. “O Luciano colocou. Vinha apagado. Luciano acionava com o controle remoto.”
O réu lembrou ainda que, no dia 27 de janeiro de 2013, ele e o irmão não participaram da passagem de som. “Eu e meu irmão, Márcio, não fomos. Ele tinha um serviço para fazer na garagem dele. Eu disse que já estávamos acostumados a tocar lá."
Ele relatou que chegou à casa noturna à 1h20. “Lembramos que nosso nome estava em uma lista. Entramos pelos caixas e pegamos a comanda. Não posso dizer que estava superlotação, mas que estava bastante cheia, estava”, disse. “As cortinas estavam fechadas, peguei o microfone. O Luciano me ofereceu uma água, ele sempre foi muito atencioso com as coisas. Organizamos as coisas, abriu as cortinas e começou o show, normal. O Luciano colava os objetos no chão”, relatou.
Marcelo explicou que, durante um tema instrumental, os artefatos foram acionados. “Em nenhum momento, ninguém disse que não poderia usar os artefatos. Danilo me disse ‘vamos tocar uma chamamé’, porque pediram. Quando eu terminei a introdução, fui até o canto do palco, estendi meu braço e fiquei com a luva na mão. Depois começou a tocar a música do Naldo. Fizemos a introdução, e cantei a primeira parte. Fazia assim com a mão em direção às pessoas.”
Segundo o réu, desde o primeiro depoimento na delegacia ele disse a verdade. “Se todo mundo que sentasse aqui dissesse a verdade, seria mais fácil resolver isso. Fiz a coreografia. Tirei a mão para o Luciano, ele tirou e guardou.” Marcelo lamentou a morte do gaiteiro. “Eu não pude dar um beijo no Danilo. É desumano. O Danilo é que nem meu irmão”, lembra.
Início na música
Marcelo disse que começou a trabalhar como azulejista aos 12 anos, e que a música era uma atividade paralela. “Comecei a trabalhar com meu pai, e ele assinou minha carteira como azulejista. Minha avó sempre tocou em igreja, e nós sempre enturmados, no meio da música. Minha prioridade era meu serviço”, disse.
Ele também disse que, entre 1998 e 1999, começou a tocar com amigos. “Começamos a tocar em garagem, sem imaginar que um dia a gente iria tocar para bastante gente. Sempre paralelo ao meu serviço. Música nunca deu dinheiro. Aparecia um show, um evento em CTG [Centro de Tradições Gaúchas]. Não tinha aquela proporção de imaginar que um dia você iria fazer alguma coisa."