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'Não sabemos como vamos reagir', diz associação das vítimas da Kiss

Flávio Silva, pai de Andrielle Silva, 22 anos, diz que a expectativa de familiares é que réus sejam condenados por homicídio com dolo

Cidades|Fabíola Perez, do R7

Julgamento é um dos momentos mais importantes de uma batalha de nove anos, diz Flávio Silva
Julgamento é um dos momentos mais importantes de uma batalha de nove anos, diz Flávio Silva

A poucos dias do julgamento dos quatro réus acusados de homicídio no incêndio da boate Kiss, que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, em 27 de janeiro de 2013, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Flávio Silva, disse ao R7 que vive à base de medicamentos antidepressivos e cardíacos para enfrentar um dos momentos mais importantes de uma batalha que se estende por quase nove anos.

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O pai da jovem Andrielle Righi da Silva, morta na tragédia enquanto celebrava os 22 anos recém-completados, diz que não sabe qual será a reação dos familiares e sobreviventes do incêndio na casa noturna em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no momento do julgamento. “A preocupação de uns com os outros é muito grande, porque não sabemos como vamos reagir. Vamos reviver o 27 de janeiro. É um mal necessário para que se mostrem as provas e se justifique a condenação”, diz. “Sabemos que vai haver uma reação, mas não imaginamos quão prejudicial ela será para cada um de nós.”

O julgamento dos quatro réus ocorrerá no dia 1º de dezembro, na capital do estado, Porto Alegre. Os sócios da boate Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, e o produtor musical Luciano Bonilha Leão serão julgados sob a acusação de homicídio simples, com dolo eventual, contra 242 vítimas. “É um dos momentos mais importantes das nossas vidas, precisamos estar 100% preparados e bem de saúde, mas não sabemos quais surpresas poderemos enfrentar nessa hora.”

Flávio Silva e a filha Andrielle Righi, que morreu enquanto celebrava os 22 anos
Flávio Silva e a filha Andrielle Righi, que morreu enquanto celebrava os 22 anos

Em viagem a Porto Alegre, o presidente da associação encara uma agenda repleta de reuniões para tratar do transporte, alimentação e hospedagem dos familiares e sobreviventes da tragédia que vivem em Santa Maria e em mais 75 municípios do estado e vão se deslocar até a capital para acompanhar o julgamento. “Nossa expectativa para o desfecho dessa tragédia é que a justiça seja feita. Nesse caso, isso significa a condenação dos réus com dolo e a punição adequada.”


Mesmo após quase nove anos do incêndio que ganhou repercussão internacional como uma das maiores tragédias do país, Flávio afirma que fatos semelhantes se repetem no Brasil pela falta de punição e fiscalização adequadas. “Entendemos que o dolo é a realização da justiça plena. Alguns falsos empresários da noite não têm receio nenhum de abrir estabelecimentos sem as devidas condições de segurança”, diz. Para ele, a condenação dos réus pode evitar que crimes semelhantes ocorram. “Os quatro indivíduos são os que respondem pelos 242 homicídios consumados e as 636 tentativas. Infelizmente, os tribunais acabaram retirando as qualificadoras.”

O presidente da associação afirma que as vítimas e familiares acreditam na condenação por dolo, isto é, com a intenção de matar, porque, diante da constatação de irregularidades e ausência de condições de segurança, os sócios e os membros da banda que se apresentava na noite teriam “assumido o risco” pelas mortes.


Nesse sentido, Flávio ressalta características também apontadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, que apresentou no dia 17 de novembro uma reconstituição virtual dos espaços da boate utilizada como prova no momento do julgamento. “A falta de extintores, a superlotação, os guarda-corpos impedindo a saída dos jovens colaboraram para as proporções que a tragédia tomou. Além disso, o uso de um artefato pirotécnico em um local com o teto rebaixado fornece tosos os indícios para a materialidade.”

Familiares no julgamento

Os dias que antecedem o julgamento estão sendo marcados por preocupações de diversas ordens dos familiares e sobreviventes da tragédia. Com a decisão de que os quatro réus seriam julgados em Porto Alegre, a associação passou a reunir recursos e esforços para facilitar o transporte e a hospedagem das vítimas até a capital.


Associação arrecada R$ 30 mil para transportar vítimas e familiares a Porto Alegre (RS)
Associação arrecada R$ 30 mil para transportar vítimas e familiares a Porto Alegre (RS)

Até o momento, segundo Flávio, 150 familiares comparecerão ao evento com o amparo da instituição. Mas, como muitos parentes das vítimas vão por conta própria, ainda não é possível saber o número exato de familiares presentes. “Desde junho estamos trabalhando para isso. Conseguimos arrecadar R$ 30 mil com uma vaquinha virtual e conseguimos doações de sindicatos para oferecer hospedagem e alimentação às famílias. Nosso objetivo é que ninguém se preocupe com os gastos."

De acordo com o presidente da associação de vítimas e sobreviventes, formada atualmente por cerca de 3 mil pessoas, o planejamento inicial era transportar 220 familiares. No entanto, o custo estimado para isso seria de até R$ 400 mil. “Se fosse em Santa Maria, conseguiríamos acolher todos os familiares”, diz.

Em 2020, o Tribunal de Justiça de Porto Alegre decidiu que os quatro réus seriam julgados juntos na capital, e não em Santa Maria. “Isso para nós foi uma grande decepção. As defesas deles alegaram que estariam correndo riscos, o que nunca aconteceu. Eles nunca foram ameaçados. Tentamos de todas as formas que acontecesse em Santa Maria, mas não conseguimos”, lembra Flávio.

O sofrimento dos pais

Ao longo dos quase nove anos à espera de respostas de autoridades públicas e da Justiça, pais e familiares das vítimas tiveram diversos problemas de saúde decorrentes da tragédia. Segundo a associação, desde 2013, oito pais morreram após terem sido acometidos por doenças relacionadas à perda dos filhos. “Tem sido muito difícil para nós. A Kiss não matou só os 242 jovens, morreram muitos familiares com baixa imunidade, vulneráveis e por terem desistido de viver”, diz Flávio. “Outros, que sobreviveram, tiveram problemas de saúde. O presidente que me antecedeu foi submetido a duas cirurgias.”

Oito pais de vítimas também morreram por doenças decorrentes da perda dos filhos
Oito pais de vítimas também morreram por doenças decorrentes da perda dos filhos

Flávio afirma que na sexta-feira (19) fez uma cirurgia de cateterismo cardíaco, procedimento para diagnosticar ou tratar problemas do coração, e se recupera em meio à tensão dos compromissos antes do julgamento. “Já tentei tomar medicamento para dormir; nos primeiros dias funcionou, mas parece que o corpo começa a não obedecer mais”, afirma. “Só não pensamos nisso nas poucas horas que conseguimos dormir.”

Além dos pais, o incêndio atingiu jovens que à época conseguiram sobreviver, mas atualmente têm de fazer tratamento para problemas pulmonares por terem inalado a fumaça tóxica liberada com a queima da espuma utilizada no isolamento acústico. “Os sobreviventes vão carregar essas complicações por muitos anos.”

Projeto de memorial

A associação de familiares e sobreviventes da tragédia planeja ainda construir na rua dos Andradas, no centro de Santa Maria, local onde funcionava a boate, um memorial físico em homenagem às vítimas. Mas, para isso, a instituição vai esperar o desfecho do julgamento. Em 2018, um concurso internacional selecionou um projeto de São Paulo para dar continuidade à ideia.

Associação tem projeto para construir memorial em espaço onde funcionava a casa noturna
Associação tem projeto para construir memorial em espaço onde funcionava a casa noturna

“Não foi feito até agora porque pensamos que só deve ser construído após o julgamento final, para sabemos o que vai se memorizar, qual será a história contada”, diz o presidente. “Não podemos deixar nada de fora, nem a história linda dos nossos filhos, nem as consequências tristes do dia 27.” O memorial deve ser construído também com a participação da antropóloga Virgínia Vechiolli, da Universidade Federal de Santa Maria, que coordenou a reconstituição virtual da boate.

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