Saiba como identificar e denunciar casos de trabalho análogo à escravidão
Repercussão do caso da mulher da mansão abandonada joga luz sobre o problema no Brasil: quase 2.000 pessoas foram resgatadas de escravidão contemporânea em 2021
Cidades|Guilherme Padin, do R7
O caso de Margarida Bonetti, moradora de uma mansão abandonada em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, processada por agredir uma funcionária e mantê-la em condições análogas às de escravidão quando vivia nos Estados Unidos, jogou luz sobre um problema ainda recorrente no Brasil.
Somente no ano passado, operações resgataram 1.937 trabalhadores em condições análogas às de escravos no país, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Previdência.
O trabalho análogo à escravidão moderna pode ser identificado por qualquer pessoa e tem as seguintes características:
- trabalho forçado (indivíduo submetido a exploração, sem poder deixar o local por conta de dívidas ou ameaças);
- jornada exaustiva (horas diárias ou dias por semana desgastantes, que põem em risco a saúde do trabalhador ou trabalhadora);
- servidão por dívida (trabalho para pagar dívidas ilegais que "prendem" o trabalhador à atividade);
- condições degradantes (elementos que indicam a precariedade do trabalho: alojamento insalubre, alimentação de baixa qualidade, maus-tratos, ausência de assistência médica, saneamento básico e água potável).
A denúncia de um caso de trabalho escravo pode ser realizada pelo Disque 100. A notificação do Ministério Público do Trabalho pode ser feita pelo MPT Pardal, aplicativo disponível nos sistemas Android e iOS. A Detrae, divisão do governo federal, recebe denúncias por meio deste link.
Mulher da casa abandonada
O caso de Margarida Bonetti ganhou notoriedade nas últimas semanas devido a um podcast do jornal Folha de S.Paulo sobre o caso. A empregada de Margarida e do marido dela, Renê Bonetti, era obrigada a viver em um porão, que não tinha banheiro nem janelas, e carregava baldes de água para tomar banho, segundo a denúncia. As agressões físicas contra ela eram constantes, revela o processo.
A patroa e o marido haviam se mudado com a empregada doméstica para os Estados Unidos no fim dos anos 1970. A vítima viveu nas condições de escravidão por duas décadas. Após a denúncia feita por vizinhos, Renê ficou preso por sete anos. Naturalizado norte-americano, ele ainda vive no país. A esposa, por sua vez, retornou ao Brasil para não ser julgada lá e morou na casa que herdou da família, descendente de barões, que pertencia à elite paulistana.
O crime poderia prescrever em 2012, mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisa se a pena para a escravidão contemporânea pode se aplicar enquanto o autor estiver vivo. Segundo a Record TV, Margarida foi condenada por escravidão nos Estados Unidos.
Com a repercussão recente do caso, a Polícia Civil de São Paulo pediu autorização à Justiça para ter acesso ao local.
Em junho, filha denunciou idoso em condições degradantes
No mês passado, uma mulher denunciou as condições extremas em que seu pai, um idoso de 70 anos, e outros dois trabalhadores estavam vivendo em uma fazenda de Corumbá (MS).
Imagens produzidas pela filha da vítima e apresentadas à Delegacia de Polícia Federal do município do Pantanal mostraram o acampamento em um local de difícil acesso, no meio de uma mata, com o entorno alagado.
Impedidos de ficar em uma área próxima à sede da fazenda, que tinha melhor estrutura para a montagem de um acampamento, os trabalhadores dormiam em redes amarradas em árvores e cobertas por uma lona fina, já rasgada pelas chuvas.
Os alimentos oferecidos a eles, segundo relatou a mulher, ficavam em caixas de papelão no chão. Alguns estavam molhados e misturados a baratas, formigas e aranhas. Como o alojamento não tinha banheiro, os homens faziam as necessidades no mato, utilizando-se de água de um poço artesiano para tomar banho — e também para consumo.
Além de submetidos a condições degradantes, eles não tinham EPI (equipamentos de proteção individual) e de primeiros socorros, e direitos essenciais lhes foram negados. Isso porque o contratante havia dito que o idoso devia R$ 3.000 em alimentos e materiais de higiene, e não o deixaria sair até que a dívida estivesse quitada. As notas relacionadas às supostas despesas não chegavam à metade do valor: R$ 1.400.
A mulher também exigiu que o gerente da fazenda, responsável pela contratação dos trabalhadores, lhes levasse alimentos e fornecesse informações de como estavam. No entanto, o compromisso tampouco se cumpriu, já que os empregados se negaram a receber os gêneros, pois seriam cobrados em mais de R$ 700 pela alimentação.
Inicialmente, o gerente havia prometido pagar R$ 8,50 por poste colocado no local, e, ao fim, disse que seriam somente R$ 5 ou R$ 6. Mas os trabalhadores informaram que, durante as três semanas em que estavam ali, não receberam pelos serviços — nem sequer em quantia reduzida. Segundo o empregador, o valor foi utilizado para abater uma suposta dívida com alimentos e produtos de higiene.
O caso se tornou conhecido devido à denúncia apresentada à Polícia Federal. Ao visitar o pai no alojamento, a filha notou se tratar de um local indigno e decidiu fazer registros do que presenciou ali: “Tirei foto de tudo e fiz um vídeo”.
Apresentados os relatos e as imagens, os trabalhadores serão indenizados pelo contratante, condenado pelas condições às quais eles foram expostos: R$ 15 mil serão destinados a eles, e outros R$ 37,5 mil doados a órgão ou entidade indicada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho).
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Entre os órgãos responsáveis pelas operações que tiraram quase 2.000 vítimas da escravidão em 2021, somente o MPT (Ministério Público do Trabalho) participou do resgate de 1.671 pessoas em condições análogas à de escravo. Os setores econômicos mais comuns eram plantações de café e cana de açúcar, garimpos, carvoarias e pedreiras, extração de carnaúba, construção civil e oficinas de costura.
Casos como o do trabalhador e a filha na fazenda de Corumbá (MS), que em 2019 já havia sido condenada por irregularidades similares, apontam para a importância das denúncias sobre as condições degradantes nas quais profissionais ainda são inseridos.