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Brecha na lei pode eliminar punição a prefeito com caixa no vermelho

Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe gestor de, nos últimos 8 meses do mandato, assumir despesas sem deixar recurso suficiente para bancá-las

Economia|Do R7

Brecha na lei pode eliminar punição a prefeito com caixa no vermelho
Brecha na lei pode eliminar punição a prefeito com caixa no vermelho

Um dispositivo inserido na lei de socorro a Estados e municípios por causa da pandemia da covid-19 pode ajudar prefeitos a "lavar" um eventual crime fiscal às vésperas do fim do mandato. A LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) proíbe o gestor de, nos últimos oito meses do mandato, assumir despesas sem deixar caixa suficiente para bancá-las. Na prática, é preciso deixar dinheiro para honrar todas as obrigações assumidas, mesmo que o efetivo desembolso só ocorra depois (por meio dos chamados restos a pagar). Isso evita que o novo eleito assuma já arcando com dívidas acumuladas pelo antecessor.

Com a pandemia, porém, o Congresso afastou essa regra da LRF e abriu a porteira para uma série de interpretações. Embora especialistas entendam que a exceção vale apenas para gastos diretamente relacionados à calamidade, fontes da área econômica veem risco de que o artigo sirva de pretexto para "lavar" o crime fiscal, deixando prefeitos que já haviam mergulhado o cofre municipal no vermelho saírem incólumes.

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Segundo levantamento do Estadão/Broadcast, 1.008 municípios já tinham caixa negativo no fim de 2019, o que indicava grande risco de que essa cláusula fosse descumprida em 2020.


O maior rombo era registrado no caixa do município do Rio de Janeiro, que estava negativo em R$ 4 bilhões no fim do ano passado. Em seguida vêm as prefeituras de Duque de Caxias (RJ), Natal (RN), Rio Claro (SP) e Diadema (SP).

Ordenar despesa em fim de mandato sem que haja dinheiro em caixa é prática vedada pela LRF e criminalizada no Código Penal, sujeita a pena de um a quatro anos de reclusão, embora até hoje ninguém tenha sido responsabilizado formalmente.


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Socorro para pandemia


Diante da crise, a Lei Complementar 173, que criou o socorro federal a Estados e municípios, afastou o artigo da LRF que trata da disponibilidade de caixa e outras exigências fiscais, "desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública". Na avaliação de técnicos do governo federal porém, o artigo está mal redigido e pode abrir margem a interpretações.

Técnicos próximos aos municípios também reconhecem que haverá margem para diferentes análises. Além da possibilidade de os 33 tribunais de contas decidirem de forma distinta, há uma demanda das próprias prefeituras para que a flexibilização seja estendida para todos os gastos. O argumento é justamente a queda na arrecadação, que drena receitas do caixa independentemente da despesa que seria bancada com ela.

Dificuldades

Na última quarta-feira (7), o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que é candidato à reeleição, esteve no Ministério da Economia pedindo apoio do ministro Paulo Guedes à intenção do município de antecipar receitas com royalties para colocar R$ 1 bilhão em caixa ainda em 2020. Sem o dinheiro, Crivella reconheceu dificuldades para fechar as contas. Quando questionado se isso o colocaria em problemas junto ao Tribunal de Contas, ele disse que não havia essa preocupação.

"Veja, nesse período de pandemia, a legislação mudou, inclusive a própria Lei de Responsabilidade Fiscal. Há um entendimento de que prazos, prestações de contas, etc, precisam ser considerados dentro das circunstâncias do momento, da crise, para todos. Não só eu não, o governo federal, todos", afirmou Crivella na ocasião.

A procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane, especialista em contas públicas, diz que será difícil separar o que é rombo causado pela pandemia do que é desfalque deixado pela gestão em si. "Durante o ano de 2020, a análise específica de todas as regras de final de mandato fica em suspenso. A gente não tem como fazer a parametrização adequada para conter a tentativa de gestores de ter o bônus no curtíssimo prazo para impactar o processo eleitoral e deixar o ônus de um endividamento para próximos gestores. A gente vai ter que acompanhar os saldos de restos a pagar com lupa no ano que vem", afirma.

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Alívio

O presidente da CNM (Confederação Nacional dos Municípios), Glademir Aroldi, diz que tem conversado com o governo federal para tentar buscar um entendimento junto aos órgãos de controle sobre qual é a melhor interpretação do alívio dado pelo socorro. Na avaliação dele, o afastamento do artigo da LRF sobre a disponibilidade de caixa precisa valer para todas as despesas, uma vez que o próprio socorro federal deu aos municípios R$ 20 bilhões em recursos para livre aplicação. Os TCEs (Tribunais de Contas dos Estados), que julgam a maior parte das contas municipais, estariam sensíveis a esse pedido, segundo Aroldi, mas ainda há divergências com instâncias federais.

"Isso está causando muitas dúvidas dos gestores", diz o presidente da CNM. "A falta de recursos para pagamento de salário também é causada pela pandemia", justifica. Ele defende, porém, que haja uma diferenciação capaz de separar quem já estava em situação ruim antes da pandemia, uma vez que o número de municípios com caixa no vermelho deve aumentar "consideravelmente".

Tesouro admite dificuldade

Responsável pelas normas contábeis da administração e pela sustentabilidade das contas públicas, o Tesouro Nacional confirmou ao Estadão/Broadcast que há dúvidas sobre como interpretar o artigo que livra os gestores de cumprir em 2020 o dispositivo que exige caixa suficiente para bancar as despesas contraídas em fim de mandato.

Segundo o órgão, a lei que criou o socorro federal a Estados e municípios afastou as punições para quem deixa o caixa no vermelho, além de outros limites e sanções, "desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública". "Há dúvida sobre como interpretar o afastamento das vedações relacionadas a esse dispositivo (disponibilidade de caixa), tendo em vista que não envolve arrecadação de recursos", diz o Tesouro.

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Segundo o órgão, seria necessária uma interpretação jurídica para definir se a exigência de caixa está suspensa apenas para as despesas relacionadas à calamidade realizadas nos últimos oito meses do ano ou se vale para outros gastos que deixaram de ter fonte financeira devido à queda de arrecadação na esteira da crise ou ao redirecionamento de recursos para o combate à pandemia.

Uma terceira possibilidade, ainda segundo o Tesouro, seria entender que a exceção prevista pelo socorro abarca toda e qualquer insuficiência de caixa, inclusive as derivadas de rombos nos anos anteriores.

Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o temor de técnicos do governo é que cada um interprete do jeito mais favorável, sob a chancela dos tribunais de contas.

Um dos criadores da LRF, o economista e professor do IDP José Roberto Afonso entende que a lei não abriu nenhuma exceção para gastos sem relação com a calamidade e que "cabe aos tribunais de contas assegurar a correta aplicação".

"Eu acho muito difícil que os tribunais de contas, mais os ministérios públicos estaduais de contas, venham fazer uma leitura de que o artigo 42 da LRF foi suspenso de forma generalizada por essa lei complementar. E acho que os prefeitos que apostarem que liberou geral correm sério risco de problemas com prestação de contas", afirma Afonso. Segundo ele, prefeitos com que ele tem conversado demonstram preocupação em atender às exigências de caixa da LRF.

TCU

A apuração do cumprimento ou não do artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que cobra a existência de caixa em fim de mandato, é feita pelos TCEs ou TCMs no momento da análise das contas de governo e depende ainda de uma interpretação jurídica do texto legal. Esses tribunais, preenchidos por indicações políticas, até hoje não motivaram nenhuma condenação de gestor por deixar rombo no caixa, embora a situação já tenha sido verificada em anos anteriores.

Para barrar a ameaça de descumprimento da LRF, os prefeitos que já verificavam desequilíbrio no caixa em 2019 precisariam conter despesas ou cancelar gastos de anos anteriores que ainda aguardam pagamento.

Além de descumprir a lei, quem deixar dívidas descobertas ainda vai pressionar o caixa dos sucessores num momento já de dificuldade. A procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane lembra que a insegurança na arrecadação tributária no momento de retomada e a expansão dos gastos supostamente extraordinários no enfrentamento da pandemia levarão ao aumento da dívida dos governos regionais.

A prefeitura de Diadema informou que, do rombo no caixa no fim de 2019, pouco mais de R$ 100 milhões vinham do déficit previdenciário diante da dificuldade do município em honrar a alíquota patronal suplementar de 19,26% (além dos 11% regulares) para sustentar as aposentadorias. Neste ano, a previsão de restos a pagar com fornecedores e prestadores de serviços é de R$ 35 milhões, fora o déficit na Previdência. A prefeitura não respondeu sobre como interpreta o artigo que afastou a necessidade de ter dinheiro em caixa para suas obrigações. As demais prefeituras não responderam até o início da tarde deste sábado.

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