Enem: Trajetória de duas jovens revela abismo entre candidatos
Estudantes compartilham como se prepararam para o exame que será realizado no próximo domingo (17)
Educação|Sofia Pilagallo, do R7*
Aos 17 anos, a gaúcha Larissa Vargas se viu obrigada, assim como tantos estudantes de baixa renda, a largar os estudos para trabalhar. No ano passado, decidida a cursar Direito e dar uma vida melhor para o filho de cinco anos, que é deficiente auditivo, a jovem prestou o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências para Jovens Adultos) para obter o certificado de conclusão do Ensino Médio. E hoje, aos 26, ela está a menos de uma semana de encarar, pela primeira vez, o tão aguardado Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).
"Na época, foi um pouco de imaturidade da minha parte. Faltava muito pouco para eu me formar, mas tive que começar a trabalhar e acabei não dando conta", afirma. "Quando você é menor de idade, ou você trabalha como Jovem Aprendiz, que paga muito pouco, ou acaba se sujeitando a trabalhar em empresas que não te registram, trabalha de domingo a domingo, não tem folga, aquelas coisas."
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Atualmente, a realidade é outra. Larissa não trabalha fora de casa, mas em compensação, tem outras diversas responsabilidades. Desde o início da pandemia, a jovem passa o dia intercalando estudos, afazeres domésticos e cuidados com o filho.
"Antes da pandemia, eu trabalhava fazendo faxina enquanto meu filho estava na escola, mas agora não tenho como. Tenho que ficar o dia todo com ele e acompanhá-lo nas aulas online, além das sessões de terapia, fonoaudiologia e aulas de Libras (Língua Brasileira de Sinais)", diz.
Quando Larissa se dá conta, já está quase anoitecendo, e seu marido, que faz bicos como pedreiro, está para chegar em casa após o trabalho. É com o salário dele e o BCP (Benefício de Prestação Continuada), uma garantia de salário mínimo às pessoas com deficiência, que a família paga as contas da casa. Ainda assim, a jovem garante que o dinheiro que entra é muito pouco – e se tornou ainda mais escasso durante a pandemia.
"Pela falta de recursos, tive que contar única e exclusivamente com o apoio de videoaulas. Inicialmente, eu tinha a intenção de me matricular em um cursinho presencial e gratuito, mas aí veio a pandemia", afirma.
"Eu até encontrei alguns cursinhos online, mas a maioria disponibilizava vídeos de estudo, e isso eu já tenho no YouTube. Além disso, a maior parte deles não dava um cronograma – e os que davam eram de 8 a 10 horas por dia, algo que está totalmente fora do meu alcance", completa.
O método de estudo consistiu, basicamente, em assistir videoaulas no YouTube e refazer as provas anteriores, disponibilizadas no aplicativo do Enem. O problema é que, para tal, Larissa, sem wifi em casa, teve que contar com um pacote de dados móveis, que acabava rapidamente. "Quando isso acontecia, muitas vezes, eu não tinha dinheiro para repor os créditos, e acabava tendo que revisar os contúdos com o material que já tinha em mãos."
Dadas as circunstâncias, a jovem lamenta dizer que considera este ano como "perdido" — e acredita que suas chances de conquistar a tão sonhada vaga em Direito são praticamente nulas. "A nota que o Sisu (Sistema de Seleção Unificada) exige é muito alta. Não tem como competir com estudantes que vieram de boas escolas e puderam estudar 12 horas por dia", afirma. "Além disso, o curso que eu quero é muito caro. Nem que obtivesse uma bolsa de 50% eu teria como pagar."
As dificuldades, no entanto, servem de motivação para Larissa, que um dia sonha em ser juíza. Influenciada pelos avós, que a criaram desde cedo, ela acredita que o estudo é a única forma de romper com o ciclo da pobreza.
"A minha mãe não tem Ensino Superior, mas a minha avó e minha tia eram professoras e eu tenho familiares que são formados em Direito. O meu avô, apesar de não ter feito uma faculdade, sempre me falou que eu só conseguiria mudar a minha vida por meio dos estudos", diz. "Mesmo quando eu larguei a escola, eu nunca pensei que deixaria de estudar. Só estava esperando o momento certo para voltar — e acho que ele chegou".
O outro lado da moeda
A experiência do próximo dia 17, data da primeira prova do Enem, não será nenhuma novidade para a sul-mato-grossense Sofia Luzi, de 19 anos. Aspirante a médica, a jovem é familiarizada com o exame desde 2016, quando estava no 2º ano do Ensino Médio e realizou a prova na condição de treineiro — modalidade destinada a estudantes que ainda não podem ingressar na faculdade.
Este ano, no entanto, Sofia não prestará o exame em Campo Grande, sua cidade natal. No início de 2020, incentivada pelos pais, ambos médicos, a jovem se mudou para São Paulo e desde março, acompanha as aulas online de um dos cursinhos mais renomados da capital paulista.
“A carga horária é relativamente pesada. Em dois dias da semana, temos aula até as 17h30, e nos demais, somos liberados por volta das 16h", afirma. "No ano passado, quando fazia cursinho em Campo Grande, eu ainda conseguia ter um pouco de lazer — fazia pilates duas vezes por semana e tocava instrumentos nas horas vagas. Este ano foi impossível."
Sofia está apenas no início de uma longa maratona de vestibulares. Além do Enem e da concorrida Fuvest, o vestibular da USP (Universidade de São Paulo), realizado no último domingo (10), a jovem teve que se preparar para outros onze exames.
A tarefa, claro, não foi fácil, mas Sofia garante que, apesar de todos os contratempos impostos pela pandemia, os preparativos para as provas não deixaram a desejar. "Além de uma plataforma semelhante a um 'portal do aluno', nos foi disponibilizado ainda um aplicativo, por meio do qual os professores postam os conteúdos e os alunos conseguem visualizar as notas dos simulados", diz. "As aulas foram paralisadas em 16 de março, mas dentro de duas semanas, já tínhamos toda essa infraestrutura à nossa disposição."
Sem contar os problemas técnicos, que qualquer pessoa com acesso à internet está sujeita a lidar, a jovem acredita que a qualidade do ensino se manteve igualmente boa. Ela ressalta, no entanto, que a falta interação com os colegas, e até mesmo com o espaço físico da escola, teve impacto negativo sobre seu desempenho.
"É esquisito não ter nenhuma posssibilidade de interação física. Quando estamos no cursinho, olhamos para o lado e percebemos que existem centenas de pessoas na mesma situação que a nossa, e isso passa uma certa tranquilidade. Já quando estamos sozinhos, de certa forma, nos sentimos desamparados", afirma.
"Além disso, estar em um ambiente como aquele te instiga a estudar. Querendo ou não, quando estamos no conforto da nossa casa, sem aquela 'aura' do cursinho, de pressão e de cobrança, tendemos a procastinar", completa.
Apesar de não se sentir totalmente confiante, Sofia acredita que certamente terá uma vantagem, "ainda que injusta", sobre outros vestibulandos que não tiveram as mesmas oportunidades que ela — e garante que uma vez aprovada, este será apenas o primeiro passo de uma longa jornada.
"Eu ainda não tenho certeza sobre qual área devo seguir, mas penso em ir para neurologia e trabalhar com pesquisa científica ou atender moradores de comunidades menos favorecidas", diz. "Apesar de ter rolado aquela pressão natural dos meus pais para cursar Medicina, sempre tive vontade de trabalhar com algo que pudesse ajudar as pessoas diretamente e fazer a diferença no mundo. Por isso, independente da escolha que eu fizer, tenho certeza de que estarei no caminho certo."
*Estagiária do R7 sob supervisão de Karla Dunder