Livros debaixo da cama e Botafogo no coração: quem é Flora DeVeaux, que botou Machado para americano ler
Responsável pela tradução de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ para o inglês mora no Rio, pula Carnaval e coleciona dicionários
Em evidência desde que sua tradução para o inglês de Memórias Póstumas de Brás Cubas viralizou no TikTok e estourou no topo da lista de mais vendidos de maio, a americana Flora Thomson-DeVeaux torce para que essa improvável adoração por Machado de Assis não seja só mais uma modinha.
Num português impecável, com direito a uma mistura de sotaques do interior paulista com carioca, a brasilianista de 32 anos conversou com o R7 por chamada de vídeo, na última semana, do apartamento onde mora, no Rio.
Falou da importância de traduzir os grandes autores “no tempo deles”, do podcast que reconta o assassinato da socialite Ângela Diniz (1944-1976), que ela produziu e virou hit na pandemia, e da paixão fervorosa pelo Botafogo, algo quase irracional, já que “não entende nada de futebol”.
Foi apenas há pouco mais de uma década que Flora aprendeu português, quando estudava na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Mas ela caiu nas entranhas nacionais de tal forma que não conseguiu mais sair. E nem quis.
Decidiu que sua tese de doutorado, apresentada em Brown em meio à pandemia, verteria para a língua mãe o autor responsável não só por sintetizar a identidade brasileira — descarada pela própria natureza —, mas por erguer os alicerces da nossa literatura.
E aí veio morar aqui. Hoje, se alguém a observa na orla da praia, são os cabelos ruivos que poderiam denunciar uma pontinha gringa. De maneira alguma a forma, natural e cheia de gírias, com que se entrega a um bate-papo. Confira trechos da entrevista a seguir.
R7 — Me conta um pouco como tem sido essa janela de fama que você teve com a explosão das vendas do Machado nos Estados Unidos.
Flora Thomson-Deveaux — É engraçado, porque houve um boom até um pouco maior quando o livro foi lançado [em 2020, esgotou na Amazon americana], mas que logo caiu no esquecimento. Então, esse susto foi maior. Minha dúvida era se alguém ia ler minha tradução. Porque eu tava lançando no meio da pandemia, como resultado de uma tese de doutorado. Então, se a nossa banca lê, a gente já está no lucro, né? Mas aí teve esse fenômeno, o prefácio publicado na The New Yorker [conceituada revista literária americana]. Mas, em última instância, é sorte. Ou o Brás Cubas agindo do além [risos].
R7 — Você acha que agora é a hora e a vez de o Machado ganhar o mundo, então?
Flora — Machado já chega com 70 anos de atraso, escrevendo sobre um personagem que nasceu em 1805. O Gabriel García Márquez [1927-2014], por exemplo, foi traduzido quando foi publicado, quase que imediatamente. O Machado é um corpo estranho. E isso não vai mudar. A gente está indo atrás do prejuízo. Temos que batalhar para que autores contemporâneos sejam traduzidos no tempo deles.
Machado já chega [traduzido] com 70 anos de atraso, escrevendo sobre um personagem que nasceu em 1805
R7 — Qual foi a maior dificuldade de traduzir Machado para o inglês? Tem uma noção de quantas vezes leu o livro?
Flora — A segunda pergunta vou ficar te devendo. Foram muitas e muitas vezes [risos]. As dificuldades foram inúmeras, mas tem isso do estilo dele, de nunca estar falando diretamente, de estar sempre de relance na narrativa. O Brás Cubas não vai chegar denunciando a escravidão, não vai chegar apontando o dedo para nada. Porque ele está muito bem. Ele está com a pele ótima [risos].
R7 — Todos os que já traduziram Machado para o inglês, dois americanos e um britânico, já morreram. Até que ponto ajudou consultar o trabalho deles?
Flora — Fiz uma primeira tradução de cabo a rabo sem olhar. Porque é isso. Uma vez que você abre a porta, nunca mais fica em paz. Mas depois foi interessante, ainda mais quando há uma obra tão ambígua. Comparar as quatro traduções lado a lado me ajudou a entender muito melhor o Machado.
R7 — Vi que você foi atrás de dicionários ali da virada do século 19 para o 20 no site Estante Virtual [que funciona como um sebo online]. Como foi esse trabalho de garimpo?
Flora — Para quem quer dicionário velho, é uma coisa muito conveniente. Então, busquei dicionários antes da reforma ortográfica [a primeira foi a de 1907], que tinham inglês com ‘z’. Eram R$ 5, R$ 8, porque ninguém quer um dicionário desatualizado. Mas era a minha tentativa de pegar uma máquina do tempo. Porque esse dicionário, bem ou mal, vai ser como uma polaroide da cabeça da sociedade. Com todos os preconceitos, com todos os arcaísmos.
O Brás Cubas não vai chegar denunciando a escravidão, não vai chegar apontando o dedo para nada. Porque ele está muito bem. Ele está com a pele ótima
R7 — Você sabe quantos você tem em casa? Dicionários de português?
Flora — Posso ver aqui [Flora começa a andar pelo apartamento, mostrando os livros nas prateleiras]. Tive que colocar um tupperware de livros do Machado embaixo da cama, porque não estava cabendo. Cara, assim, acho que tem uma dúzia. E tenho certeza que tem mais embaixo da cama. Mas vamos... pode pôr uma dúzia [risos]. Meu preferido é sempre esse... o Michaelis. E juro pelo amor de Deus, nele devo ter pago R$ 3.
R7 — Você não acha curioso que um inglês como o John Gledson seja o principal estudioso de Machado hoje?
Flora — Assim, eu sempre volto para o exemplo da Helen Caldwell, [brasilianista americana] que traduziu Dom Casmurro, pela primeira vez [em 1953]. Quem está de fora tem uma visão um pouco privilegiada, mais aguda. Foi ela que percebeu, que questionou, meio século depois, a possibilidade de o que ele [narrador] fala sobre a Capitu ter outra interpretação [Caldwell inverteu a leitura da obra, ‘absolvendo’ a personagem de uma acusação de traição ao perceber que a história era narrada do ponto de vista do homem supostamente traído, Bentinho]. Então, voltando à pergunta, não me surpreende em absoluto.
R7 — Achei divertido saber sobre a sua angústia para traduzir a palavra “nimiamente”, ali bem no início do livro. [No trecho “... evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra…”].
Flora — Foi uma das palavras com as quais eu senti que tinha conseguido realmente seguir os passos do Machado. Quase estar na mesma sala com ele. Mas pensei: que palavra é essa? Por que ele não falou ‘muito’? O Brás não costuma usar palavras excessivamente formais. Não é o estilo dele. Ele não está tentando me impressionar justamente porque está morto. Então, será que ‘nimiamente’ é uma palavra muito mais comum no século 19? Não. Ainda é estranho. Muitas vezes é esse jogo. Que diabos que ele está fazendo? E eu estou ali assim... puxando o dicionário, puxando o jornal. Tentando entender. Será que ele está zoando algum político? Machado tem sempre essas coisas, essas redes invisíveis textuais. E aí achei nesse dicionário parte da definição da palavra... É isso. Ele queria falar ‘prolixo’. Mas a palavra ‘prolixo’ não era prolixa o suficiente. Ela é uma contradição. Ele já está te mostrando na palavra, nessa construção, o porquê de ele não querer explicar esse processo. Porque tomaria muito tempo dele e muito do nosso tempo. É uma possibilidade. Eu não tenho como provar que o Machado abriu esse dicionário. Mas, naquele momento, eu senti que eu estava vendo o Machado indo lá pegá-lo.
R7 — Queria saber se você tem um trecho favorito de Memórias Póstumas. E se mais algum deu bastante trabalho para traduzir.
Flora — O Delírio [sétimo capítulo do romance, que antecede a morte de Brás Cubas e é apontado como a primeira narrativa fantástica do Brasil] ainda guarda um lugar no meu coração. Porque acho que foi aí que pensei: ele não veio para brincadeira. Mostra de uma vez até onde ele está disposto a ir. Gosto muito também da história da Dona Plácida [beata velha e pobre que encobria a traição do protagonista]. É como se fosse um micro conto da mais profunda crueldade. Um retrato da indiferença brasileira.
Sobre outras dificuldades [de traduzir], tem essa inversão de ‘defunto-autor’. Isso é muito difícil, porque em inglês não dá para fazer essa inversão. Eu tinha testado umas 20 formulações diferentes. O William Grossman [primeiro tradutor de Machado para o inglês] teve que basicamente explicar a piada. Acabou ficando uma coisa muito prolixa. E eu não queria fazer isso. Aí tive que expandir um pouquinho para fazer sentido. Não dá para ganhar todas.
R7 — Como brasilianista, qual você acha que é a principal crítica que o Machado faz à sociedade brasileira no livro? Bom, pode ser mais de uma, né? Porque são várias ali.
Flora — A crítica que está colocada ali é o Brás Cubas inteirinho, né? É essa pessoa que ele bota falando para a gente. Ele está denunciando e, ao mesmo tempo, está nos testando. Qual que vai ser a sua relação com esse personagem? O Brás Cubas não é um monstro. Ele é um cara carismático, engraçado, que está ali falando essas barbaridades, mas é bacana, é sedutor. A barbárie absoluta está colocada ali, mas de maneira alguma de um jeito panfletário.
O Machado é um homem negro inserido na sociedade escravocrata, depois da abolição da escravidão, dependendo da burocracia do governo, vivendo da escrita em um país que tem uma absoluta maioria de analfabetos.
Não queria chegar num jogo e dizer: quem ganhar vai ser meu time. Não achei isso correto. Achei quase desrespeitoso com os outros torcedores. Eu queria ter algo a perder
R7 — O podcast da Rádio Novelo [que Flora fundou com Branca Vianna] sobre o assassinato da Angela Diniz, Praia dos Ossos, acabou virando um hit da pandemia. Você esperava essa repercussão toda?
Flora — A gente não sabia o que esperar também. Na hora era só a gente em casa torcendo para alguém ouvir. Foi minha outra grande surpresa de 2020 essa acolhida que o Praia teve, esse público que ele encontrou, porque realmente muita gente estava descobrindo o podcast na pandemia, né? Ali, por meio da história da Ângela, a gente tentou contar muitas histórias. Ao mesmo tempo em que foi uma história única, muito fascinante por si, é sintoma de estruturas muito maiores, muito mais antigas, mais profundas.
R7 — E de onde veio isso de ser torcedora fanática do Botafogo?
Flora — Eu nunca tinha visto um jogo de futebol. Quando cheguei ao Brasil, vim pela música, pela história, pela literatura, não por causa do futebol. Mas aí as pessoas começam a chegar num grau, tipo: como assim não vai ter time? Tem que escolher. Então, passei uns meses querendo saber muito sobre futebol. Não queria chegar num jogo e dizer: quem ganhar vai ser meu time. Não achei isso correto. Achei quase desrespeitoso com os outros torcedores. Eu queria ter algo a perder. Não era saber qual era o técnico, quem está bem e quem não está. Era saber o que significa torcer para cada um desses times. Acabei me reconhecendo um pouco no Botafogo. Isso de tudo um pouco exagerado, uma coisa um pouco desproporcional. Aí fui no meu primeiro jogo, o Botafogo venceu de virada e eu fiquei completamente fissurada.
Outra coisa que foi muito importante foi uma crônica da Clarice Lispector [1920-1977], sobre torcer para o Botafogo sem saber nada de futebol. E, no entanto, sofrer muito pelo Botafogo. Tem todos esses sentimentos e também me identifiquei. Foi bem importante, tá?
Tenho certeza que, mesmo sendo uma adolescente que adorava ler, deve ter obra-prima que me passou batido porque eu estava de mau-humor
R7 — Voltando ao Machado, o que você acha de, apesar de tudo, ele ainda ser um sofrimento para muitos alunos do ensino médio?
Flora — Vou fazer a minha penitência. Puxar os currículos do que li no ensino médio e reler essas obras americanas. Não quero botar a culpa em professor nenhum. Tenho certeza que, mesmo sendo uma adolescente que adorava ler, deve ter obra-prima que me passou batido porque eu estava de mau-humor.
R7 — Queria que você preenchesse a lacuna: Machado está para a literatura brasileira, assim como alguém está para a americana.
Flora — Cara, aí é uma coisa desproporcional. A história da literatura americana não tem uma figura como Machado, que ao mesmo tempo organiza a cena literária e mostra possibilidades de experimentação que têm um cheiro de novidade até hoje. A literatura americana acaba sendo muito mais pulverizada em mais nomes. Não tem.
R7 — Para encerrar: qual que é o maior escritor do mundo de todos os tempos?
Flora — Ah, não vou ter condição, não. Defendo até o final a genialidade do Machado, mas escolher um é impossível.