A desgastante rotina de um acampamento improvisado para imigrantes na Califórnia
Local nas montanhas foi descoberto por um bombeiro, e é usado como ponto de parada por pessoas que esperam regularização nos EUA
Internacional|Emily Baumgaertner, do The New York Times
Era 1h53 e Peter Fink se encontrava em um planalto de montanha árido perto de Campo, na Califórnia, distribuindo cobertores para pessoas de quatro continentes que tinham chegado na calada da noite.
Esse se tornou o ritual noturno do jovem de 22 anos, boné de beisebol e camisão de lã, que, do alto de uma formação rochosa a pouco mais de 300 metros acima do muro que divide os EUA do México, proporciona um espaço de acolhimento em tempo integral para quem entra ilegalmente em solo norte-americano.
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Com os membros armados da Guarda Nacional a postos nos pontos de entrada mais usados ao longo da região sudeste do condado de San Diego, os imigrantes criaram novas rotas em regiões mais remotas, onde o terreno é mais difícil, as temperaturas são mais extremas e não há infraestrutura nenhuma para mantê-los vivos.
Para quem tem a intenção de ser detido pelos agentes da Patrulha de Fronteira e dar entrada no processo de regularização, o acampamento improvisado de Fink – área de terra batida sob as grades de uma torre de alta voltagem – se tornou a primeira parada, onde porções modestas de alimentos doados, água e uma fogueira ajudam os estrangeiros a sobreviver enquanto esperam os oficiais cruzar a extensão e prendê-los antes que seu estado de saúde se deteriore perigosamente.
Nesse ponto e em outros ao longo da divisa, eles têm de aguardar horas, às vezes dias, para ser presos – tanto que um juiz distrital decidiu, na semana passada, que os integrantes da força têm de agir “prontamente” e levar as crianças para abrigos seguros e limpos. Mas, ao contrário de outros locais de espera que surgiram em áreas mais populosas, o de Fink não conta com tendas emergenciais nem médicos voluntários, aterros ou latrinas – apenas um buraco cavado para servir de banheiro comunitário, e o próprio Fink. De manhã, havia ali indianos, brasileiros, georgianos, uzbeques e chineses.
Segundo as autoridades, a verba federal e o pessoal são muito limitados para impedir o fluxo de entradas na região, e operações como essa se tornaram grande fonte de tensão no condado.
Fink é loiro e parece novinho, por isso deixou a barba para parecer mais maduro. Cresceu na região do Noroeste Pacífico e aprendeu a falar espanhol durante o tempo que passou colhendo cerejas, em um emprego temporário de verão. Em 2020, começou a se interessar pela crise da imigração; passou meses no Arizona, caminhando ao longo da fronteira como voluntário de um abrigo em Sonora durante o dia enquanto cursava a faculdade de estudos internacionais à noite, via internet, usando o Wi-Fi gratuito do McDonald’s local.
Na verdade, ele não criou esse acampamento nas montanhas; apenas o descobriu. Um morador da região notara focos de fogo no platô todas as noites e Fink, bombeiro florestal e campista inveterado que viajava pela região, se ofereceu para pernoitar lá e descobrir o que estava acontecendo. Em questão de horas, mais de 200 imigrantes chegaram a pé – entre eles, mulheres grávidas, crianças e idosos –, mais ou menos amontoados para se proteger do vento cortante.
A notícia se espalhou pelas comunidades meridionais do que é conhecido como o Império Montanhoso, área tão isolada que a aldeia minúscula de Jacumba Hot Springs (com 857 habitantes), a quase 50 km de distância, se tornou a sede das operações: ali, os voluntários juntam os restos de madeira de uma arena para arremesso de machado e de um marceneiro; usam um centro para jovens abandonado como espaço para a triagem de doações de não perecíveis; e transformaram em depósito para os engradados de água e folhas de lona o contêiner que se encontrava no quintal de alguém.
Depois da primeira noite, no início de março, Fink continuou ali – e montou uma série de barracas, cada uma para quatro pessoas, alinhadas, onde se acomodavam até dez quando o vento se tornava intolerável. Usou tinta branca para identificar o conteúdo das gavetas de um arquivo antigo em quatro línguas, destacando o purê de maçã para as crianças e o leite em pó para os bebês. E estabeleceu regras para seu acampamento: cada pessoa tinha direito a uma guloseima; a área comum tinha de ser mantida sempre limpa; nada de desperdício de madeira para fogo; mulheres e crianças tinham prioridade nas barracas.
Nesse dia, o sol já estava quase a pino quando Fink, checando a região com binóculo, viu um casal saindo de um carro sem identificação em uma estrada de terra do lado do México e caminhando pela região árida em direção aos EUA. A mulher, nos estágios finais de gestação, começou a diminuir o passo.
Fink pegou duas garrafas d’água e foi descendo até o cânion, esperando os dois a uma boa distância do muro fronteiriço, como a não os encorajar. Já em solo norte-americano, a mulher, ofegante, se abaixou; o marido se agachou na sua frente e tomou o rosto dela entre as mãos. “Está bien?”, sussurrou, enxugando-lhe o suor da testa. Ela só balançou a cabeça, assentindo.
Durante um momento, tudo ficou quieto. Depois, Fink perguntou em espanhol de onde eram (San Salvador), para quando era o bebê (dali a um mês) e se tinham sido forçados a pagar propina para as autoridades mexicanas a caminho da divisa; os dois disseram que não. “Buena suerte”, o rapaz comentou.
A seguir, levou-os para cima, passando por sacolas abandonadas e roupas no caminho, usando os apoios de pé que cavara na terra, técnica que aprendera combatendo incêndios. Assim que chegaram ao acampamento, ele se virou nos calcanhares e voltou a descer porque vira uma menina de calça de bolinha e rabo de cavalo ao lado da mãe e percebera que estavam a ponto de seguir pela trilha errada.
A primeira coisa que Briana Lopez, de cinco anos, fez ao chegar ao alojamento improvisado foi comer as balas de goma que ganhara do rapaz; a segunda foi falar por telefone com o pai, que ainda se encontrava na casa da família, na Guatemala. “Tudo bem, minha menina? Está contente?”, ele perguntou em espanhol. “Sí, estoy bien!”, foi a resposta.
Fink recolheu a última leva de imigrantes à noitinha; a seguir, agachado na própria barraca, mastigando um pedaço de pão, começou a organizar uma entrega de doações por telefone. Normalmente, é nessa hora que vai para a cama, torcendo para conseguir dormir algumas horas antes da chegada do primeiro grupo de estrangeiros da madrugada, mas à distância ouviu a respiração entrecortada e uma mulher apareceu sozinha, desabando em seus braços, chorando de soluçar. Depois, mais calma, contou que os companheiros de viagem a tinham deixado para trás, acompanhando uma via férrea subterrânea, distanciando-se demais e desaparecendo no meio do mato. E que não tinha ideia de onde estavam.
Fink chegou à borda da chapada no ponto mais alto, pôs as mãos ao redor da boca e gritou em espanhol: “Venham, aqui tem comida e água! Não precisam ter medo – cheguem aqui! Sejam bem-vindos aos EUA!”, sua voz ecoou pelo vale.
A seguir, colocou um cobertor nas costas da mulher que aguardava ao seu lado. “Dios te bendiga”, ela disse. Deus o abençoe.
c. 2024 The New York Times Company