Logo R7.com
Logo do PlayPlus

Com pinturas e histórias, alunos ucranianos revelam suas impressões sobre a guerra

‘Quando a guerra começou, foi muito mais assustador do que eu imaginava. Eu pintaria o medo’, disse uma das crianças

Internacional|Oleksandr Chubko e Carlotta Gall, do The New York Times


Para crianças lidarem com a realidade da guerra, professores propõem um exercício de pintura Oksana Parafeniuk/The New York Times - 15.03.2024

Kiev, Ucrânia – Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022, e parte de seus alunos fugiu para o exterior, a professora de literatura Iryna Kovaliova decidiu que era hora de se aposentar. “Cheguei a escrever a carta de demissão e tirei minhas coisas da escola, mas os alunos do sexto ano, o 6H, imploraram que eu ficasse, pelo menos até a guerra acabar”, contou em entrevista recente.

Veja também

Dois anos depois, ela continua lecionando no mesmo colégio em Kiev, aos 63, três além da idade de aposentadoria permitida aos docentes, arrasada com o fato de ver os jovens tendo de lidar com o trauma dos ataques aéreos, dos bombardeios e da perda de entes queridos. Ela se preocupa não só com os alunos que foram desalojados, forçados a estudar pela internet a distância, mas também com os que já ensinou e se alistaram no Exército, combatendo na linha de frente – tanto que começa o dia espiando os perfis nas redes sociais de dois deles, aliviada por ver que estiveram on-line, sabendo que pelo menos estão vivos.

Maria Lysenko, a diretora do colégio, confessou a preocupação com toda a geração atual, e também com seus docentes. “As crianças são como um diapasão, reflexo do que está acontecendo na nossa vida. Sempre há um motivo para uma delas estar deitada na carteira – talvez não tenha conseguido dormir à noite porque estava esperando notícias de alguém próximo. Mas e os professores? Eles estão se segurando, não podem surtar, entrar em pânico. Estão fazendo o que podem.”

Em toda a Ucrânia, alunos e professores começaram o novo ano letivo em dois de setembro, num momento em que os russos vêm intensificando as investidas em várias cidades.


Um desenho sobre a guerra criado pelos meninos da classe 6H de Iryna Kovaliova em uma escola em Kiev Oksana Parafeniuk/The New York Times - 15.03.2024

A 6H é a mais problemática de todas as classes do sexto ano no colégio de Kovaliova. “Não gostam de disciplina e não conseguem parar quietos, principalmente porque enfrentaram a quarentena durante a pandemia e, até agora, dois anos de guerra. Geralmente, ignoram as ordens; é um grupo difícil, mas até entendo o porquê desse comportamento. São barulhentos; querem gritar alguma coisa, mas nunca perguntamos a eles o quê. Estão pedindo ajuda, sangrando, feridos, mas ninguém percebe.”

Por isso, em vez de checar a lição de casa em uma ocasião recente, ela surpreendeu a classe logo cedo. Convidou um repórter do “The New York Times” para ser ouvinte na aula, e disparou repentinamente: “O que mudou dentro de vocês nesses dois anos? Como mostrariam isso em uma pintura coletiva?”


Parte de uma pintura feita pelas meninas de uma classe de 6º ano sobre suas experiências de guerra Oksana Parafeniuk/The New York Times - 15.03.2024

Kovaliova contou que desde a invasão vem tentando convencer a administração a montar um mural gigante no abrigo antiaéreo da escola, pintado pelos alunos, no qual poderiam expressar suas experiências. Com o aval demorando a sair, ela decidiu ir em frente, pedindo aos alunos que começassem a pensar no projeto.

O primeiro a se manifestar foi Danya, de 11 anos, desalojado de Luhansk, cidade onde morava, em 2014, quando teve início o conflito entre os separatistas apoiados pela Rússia e as forças do governo nas regiões orientais de Luhansk e Donetsk. “Antes eu achava que minha casa era meio que um guarda-roupa, onde eu podia me esconder e nada me atingiria. Mas não é bem assim.”


A seguir, Yehor, também de 11 anos, contou que fugiu da capital com a mãe logo no início da guerra. “Eu queria ficar, mas meus pais acharam que os soldados já estavam muito perto. Então fomos embora. Meu pai ficou, e viu com os próprios olhos um míssil voando e explodindo.”

Sua família se refugiou em uma cidadezinha a oeste de Kiev. Na viagem, o garoto levou um ícone religioso consigo, com a ideia de que o ajudaria a chegar ao destino em segurança. Disse que era o que queria pintar.

Kovaliova explicou sua ideia para a classe. “Imaginem um aluno chegando à escola daqui a 20 anos. A guerra acabou, vivemos em um país feliz. Então ele vê o mural assinado pela Sala 6H, o guarda-roupa e um ícone lá dentro. Vai começar a pensar.”

Vários dos alunos perderam parentes durante a guerra que assola o país Oksana Parafeniuk/The New York Times - 15.03.2024

“O que mudou dentro de vocês nesses dois anos? Como mostrariam isso em uma pintura coletiva?”, repetiu.

Nazariy, de 12 anos, respondeu: “Para mim, a guerra é, acima de tudo, morte. É muito sofrimento.” Um riso nervoso percorreu a sala. “Meu tio morreu.” Kovaliova pediu silêncio. “Quantos anos ele tinha?”, questionou. “Trinta e dois.” “Que tristeza, dá até vontade de chorar. O que você pintaria?”, insistiu ela. “Um forte. Cavaleiros entrando nele. E muito sangue em volta.”

“O que mudou em vocês?”, perguntou, voltando-se para a turma.

“Não tenho mais vergonha de falar o que penso. Antes, eu meio que me revoltava de ter nascido na Ucrânia, mas, depois que a guerra começou, passei a achar legal ser ucraniano. Eu pintaria um espelho em um guarda-roupa para ver quanto mudei”, afirmou Nazar, de 12 anos.

Arina, de 11, explicou que fora desalojada do leste do país e separada dos avós, que continuaram no território ocupado pelo inimigo. Começou a chorar, e vários colegas se adiantaram para abraçá-la e consolá-la. “Eu pintaria alguém chorando, porque as pessoas morrem e você não pode nem visitar o túmulo delas.”

“Esta é uma discussão muito importante, que me ajudou a entendê-los melhor e ajudou vocês, que também estão se conhecendo um pouco mais. Obrigada”, comentou a professora.

Grande parte dos alunos precisou mudar de casa por causa de bombardeios Oksana Parafeniuk/The New York Times - 15.03.2024

A essa altura, as histórias começaram a fluir. “Meu irmão morreu faz pouco tempo. Tinha 24 anos. Nunca dei muito valor à vida que tive a seu lado. Eu pintaria vários caixões com braços à sua volta”, disse um garoto chamado Sasha. E acrescentou: “Nossa pintura está ficando complicada.”

Outro garoto, Kyryl, também se manifestou. “Quando a guerra começou, foi muito mais assustador do que eu imaginava. Eu pintaria o medo.” “E como faria isso?”, questionou Kovaliova. “Com a escuridão”, respondeu ele.

c. 2024 The New York Times Company

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.