Como a 'lenda da figueira' do Chipre se espalhou pelo mundo via internet
A história de um arbusto que cresceu onde não deveria e se transformou em um emaranhado de versões em diversos veículos da imprensa internacional
Internacional|Fábio Fleury, do R7
A história é incrível demais para ser verdade. Um arbusto de figueiras cresceu num lugar onde não deveria: uma praia isolada e árida no Chipre. Graças a isso, três pessoas que foram mortas em 1974 foram finalmente localizadas. A origem da planta seriam sementes do figo que uma das vítimas comeu em sua última refeição.
O relato foi publicado por um jornal turco no dia 18 de setembro, e nos dias seguintes foi parar em grandes veículos internacionais, como o Daily Mirror, da Inglaterra, o Clarín, da Argentina e muitos outros. A internet foi fundamental para que a história se espalhasse e, como numa brincadeira de telefone sem fio, cada veículo contava a história de um jeito.
Alguns falavam que os corpos de Ahmet Hargune, Erdogan Enver e Unal Adil tinham acabado de ser localizados. O jornal turco Hurriyet Daily News, o primeiro a dar a notícia, falava que a descoberta aconteceu em 2011. Na realidade, tudo aconteceu alguns anos antes, mais precisamente em 2006.
História antiga
"Essa é uma história antiga!", se espantou a ativista e jornalista cipriota Sevgul Uludag, que escreveu um artigo sobre o caso em 2008, quando procurada pela reportagem do R7. "Um jornalista da Turquia 'descobriu' a história e foi aí que tudo começou de novo".
Leia também
Em seu texto, Uludag conta sobre uma visita à praia de Ayios Georgios Alamanos, na cidade de Limassol, no sul do Chipre, muitos anos antes da descoberta dos corpos. Ela se apaixonou pelo lugar e voltou diversas vezes, sem saber do passado enterrado debaixo das rochas.
"Costumava ir para lá fugir do caos de Nicósia", conta ela, falando da vida agitada na capital do país, onde mora. Ela é uma das principais ativistas que buscam chamar atenção da opinião pública para tentar encontrar os mais de 2 mil desaparecidos no conflito que aconteceu após a invasão da Turquia que dividiu a ilha em duas em 1974.
Local de um crime
Foi em 2006 que um amigo a chamou para ir a um lugar onde acabara de ocorrer uma exumação e três corpos de cipriotas de origem turca tinham sido descobertos. Era a mesma praia onde ela ia para esquecer dos problemas, comendo polvos e peixes frescos.
"Quando chegamos, fiquei chocada! Era perto do restaurante onde costumávamos ir, era só subir para uma estrada lateral e andar uns 50 metros. A exumação foi ali, o buraco ainda estava aberto. Nunca mais conseguiria comer ali, era o local de um crime", contou ela.
A figueira chamou a atenção de Xenophon Kallis, um dos principais líderes nas buscas por desaparecidos. Visitando a praia, ele estranhou a presença do arbusto em um lugar onde não deveria estar, num terreno seco e muito rochoso.
Por fim, conseguiu localizar e exumar os corpos de Hargune, Enver e Adil. Esse tipo de figueira só crescia nas montanhas, perto da vila de Episkopi, onde Hargune vivia.
Turcos executados
Em agosto de 1974, em meio aos conflitos causados pela invasão militar da Turquia, que dividiu a ilha do Chipre em duas, extremistas gregos sequestraram Ahmet Hargune de sua casa, em Episkopi. Ele fazia parte da resistência turca no sul da ilha.
Juntamente com Enver e Adil, Hargune foi levado para uma caverna acessível apenas pelo mar. Os extremistas mataram os três turcos no local e, para que ninguém os localizasse, explodiram a entrada com dinamite.
A explosão abriu um buraco no teto da caverna e, com a luz do sol, sementes de figo que estavam lá dentro germinaram até formar os arbustos que foram localizados 32 anos mais tarde por Kallis.
O destino da figueira
Para o irmão de Hargune, Münür Hergüner, 87, foram as sementes de figo comidas pelo irmão que deram origem ao "milagre". De acordo com o Comitê de Pessoas Desaparecidas do Chipre, na realidade as raízes da figueira estavam numa área superior da caverna, longe dos corpos.
"Pode ser que morcegos comessem esse tipo de figo antes de voltar à caverna, talvez haja outra explicação. Mas independente da explicação, o importante é que essa figueira levou Kallis a encontrar essas pessoas. Ela mostrou o caminho", escreveu Uludag.
Os três turcos foram enterrados em Nicósia em fevereiro de 2008. Dois anos depois da figueira ser encontrada e retirada, durante a exumação. A missão dela estava cumprida, acreditam os cipriotas.