Como uma rede varejista incompreendida decifrou como os norte-americanos compram
Fundada no Alasca, em 1984, a Cotsco cresceu com uma cultura de descontos e compras de ostentação
Internacional|Ben Ryder Howe, do The New York Times
Anchorage, Alasca – Quando inaugurada, em 1984, no West Dimond Boulevard, em Anchorage, maior cidade do Alasca, a rede varejista Costco não parecia o futuro da alimentação. O armazém, um galpão pretensioso da cor de café velho, dispunha dos produtos e das ofertas que deixam os habitantes do Alasca loucos: quantidades descomunais de alimentos básicos, como manteiga de amendoim e molho de tomate, além dos produtos locais favoritos, como a salsicha de rena. O clima rigoroso do estado e a necessidade de viajar durante horas, ou até mesmo dias, para comprar mantimentos fizeram dele um sucesso desde o início.
Veja também
Atualmente, o estacionamento, cheio de caminhonetes 4x4 com pneus robustos e casas móveis que se assemelham a fortalezas portáteis, parece um pouco extremo para uma loja de mantimentos. As mercadorias à venda também têm uma pitada de ousadia: trajes de sobrevivência de neoprene, moedores de carne e cofres para armas.
Embora a localização em Anchorage, uma das primeiras da rede, já tenha parecido uma exceção para os sobrevivencialistas, hoje demonstra quanto a Costco foi visionária. “Em 2020, aproximadamente um quarto da população armazenava alimentos não perecíveis”, disse Jennifer Mapes-Christ, da Packaged Facts, empresa de pesquisa de mercado. Em 2019, um quarto dos consumidores dos Estados Unidos comprava na Costco. Atualmente, é quase um terço. A rede é a terceira maior varejista do mundo, só ficando atrás da Amazon e do Walmart.
Mas seu sucesso vai muito além de proporcionar a possibilidade de estocar produtos. A Costco conseguiu penetrar na psique do consumidor americano, apelando para o superego das compras responsáveis (“Doze latas de atum por US$ 18!”) e para o id (“Mereço essa TV de 98 polegadas”). Aparentemente, a varejista é uma loja de descontos, um lugar para economizar dinheiro e esticar o orçamento, além de ser uma experiência de compra aspiracional, que alimenta o mais americano dos apetites: o consumo ostensivo.
Poucas empresas exercem maior influência sobre o que comemos (ou o que vestimos, o que usamos em nossa higiene pessoal e como abastecemos nosso veículo). A Costco domina múltiplas categorias de oferta alimentar: carne bovina, aves, produtos orgânicos e até vinhos finos de Bordeaux, dos quais vende mais do que qualquer outro varejista no mundo. Sua marca própria, Kirkland, gera mais receitas do que nomes tão importantes quanto a Nike e a Coca-Cola.
Apesar do sucesso, a empresa não é bem compreendida. Aqueles que ocupam os cargos mais altos são reservados e discretos. E, além dos relatórios trimestrais, a Costco raramente revela qualquer coisa sobre seu funcionamento interno. Mas para Charlie Munger, que era um bilionário investidor e braço direito de Warren Buffett na Berkshire Hathaway, multinacional americana, o balanço financeiro da companhia fala por si só. Em uma de suas últimas entrevistas antes de falecer, no ano passado, ele foi direto: “É uma empresa perfeita.”
‘Tudo era uma questão de confiança’
Uma vez que os membros – 134 milhões no mundo inteiro – entram no time, raramente o abandonam. De fato, a devoção à marca é tão fervorosa que inspirou homenagens nas redes sociais, menções de famosos em programas noturnos que esperam parecer acessíveis, e até mesmo um livro, “The Joy of Costco” (A alegria da Costco, em tradução livre).
Foi fundada por um advogado com ideais utópicos e uma moral rígida. Sol Price, nascido em 1916, no Bronx, era filho de empregados da confecção de Minsk e pertencia à geração de judeus deslocados e outros europeus que prosperaram no pequeno comércio de Nova York. Na década de 1920, a família se mudou para San Diego.
Depois de se formar em direito pela Universidade do Sul da Califórnia, Price começou sua carreira representando donos de mercearias e outros comerciantes. Nos anos 1950, começou a transformar armazéns vazios em San Diego em bazares exclusivos para membros, onde, por uma taxa módica, os clientes podiam comprar de tudo, desde meia-calça até cigarro, a preços de atacado. A chave para o negócio, chamado FedMart, era simples: manter os membros renovando sua adesão ano após ano.
Em 2003, Price descreveu sua filosofia à revista “Fortune”: “Como vendemos coisas com a menor margem de lucro? O objetivo principal é ver tudo do seguinte ponto de vista: ‘Estamos sendo realmente honestos com o cliente?’”
Em razão de uma série de fusões ao longo dos anos, o FedMart de Sol Price se transformou no que conhecemos como a Costco na década de 1990. Sediada atualmente em Issaquah, Washington, a empresa se manteve fiel à visão de Price. Continua visando as relações e os sócios parecem satisfeitos, já que 93 por cento renovam sua adesão, No último trimestre, essas taxas somaram US$ 1,12 bilhão, aproximadamente dois terços dos US$ 1,68 bilhão da receita líquida total da Costco. A dependência, em outras palavras, continua sendo mútua.
‘Um ecossistema gigante’
Em Sugar Land, no Texas, cerca de 6.400 quilômetros ao sul de Anchorage, ninguém pega um avião para fazer compras. Mas nesse pântano suburbano de Houston a vida gira em torno da Costco da mesma maneira. Local de uma antiga fazenda-prisão da indústria açucareira, a cidade se transformou, nos últimos anos, em um complexo de comunidades planejadas. Em junho, a companhia abriu a loja número 882, a terceira da região, em um terreno de grande valor.
Assim como Anchorage, Sugar Land é o lar de uma população asiático-americana em rápido crescimento (em grande parte indiana e paquistanesa-americana), que a Costco está ansiosa para atender, apesar do desafio de operar em uma nação com gostos e tradições locais extremamente diversos. “Ela sabe o que se passa no Texas, porque tem um escritório lá. É muito astuta. É uma das poucas varejistas que permitem que uma marca entre só em uma loja para testar seus produtos”, disse Jeremy Smith, presidente da Launchpad, incubadora de marcas de alimentos, com sede no Oregon, especializada na colocação de produtos na Costco.
Dessa forma, a empresa consegue detectar tendências e enviar informações para Issaquah. “É um ecossistema gigantesco”, comentou Smith, embora também dependa do capital humano – a expertise dos gerentes de loja. A Costco tende a promover funcionários internos, incutindo em seu pessoal a cultura particular da empresa ao longo de décadas, se não durante toda a carreira. Muitos de seus melhores empregados começaram como embaladores ou manipuladores de alimentos.
‘A Costco nunca faria isso’
De modo mais amplo, os americanos não confiam em corporações. Mas quando questionados sobre quais são confiáveis, sempre colocam a Costco entre as primeiras. “Vendem os mesmos alimentos que todas vendem. Não é que os produtos sejam mágicos. Mas a empresa criou uma cultura”, observou Smith.
Sol Price queria que os membros da Costco se sentissem respeitados e inteligentes. A empresa ainda é conhecida por sua política de devolução sem perguntas, produtos de alta qualidade e atendimento alegre ao cliente. Os funcionários são significativamente mais bem pagos (uma média de US$ 26 por hora) do que seus equivalentes em grandes varejistas (uma média de US$ 17 por hora). Isso ajuda a criar “uma equipe estável, motivada e capaz”, afirmou Zeynep Ton, professora da Escola de Administração Sloan do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
Talvez o mais importante seja a reputação da Costco de oferecer preços baixos. No caso dos produtos da marca Kirkland, por exemplo, Ton disse que “não aumenta os preços em mais de 14 ou 15 por cento”. Isso inclui o produto principal da Costco, o popular combo de cachorro-quente e refrigerante por US$ 1,50, que custa o mesmo desde 1985. Não se sabe publicamente se a empresa ganha dinheiro com os 200 milhões de cachorros-quentes que vende por ano, mas o preço é amplamente considerado um marketing brilhante.
Outra maneira menos óbvia de a empresa manter a fidelidade de seus membros é não vender espaço nas prateleiras. “Muitos varejistas exigem que os fornecedores paguem por espaço em uma loja. A Costco nunca faria isso”, comentou Mark Stovin, ex-executivo da Costco que atualmente trabalha para a OSMG, importante corretora de alimentos.
Na inauguração de Sugar Land, foi possível ver Ron Vachris, que em janeiro se tornou CEO da Costco – o terceiro em 42 anos de história da empresa –, conversando com o pessoal da loja e inspecionando a tilápia congelada. Centenas de funcionários da corporação, conhecidos por sua lealdade fervorosa, vieram de lugares tão distantes quanto Baton Rouge e Los Angeles para celebrar seu novo chefe e apertar a mão dele.
Vachris, que começou como operador de empilhadeira, em 1982, cumprimentou calorosamente os funcionários e os clientes, aparentemente disposto a passar a manhã toda com eles. Mas, quando um jornalista se aproximou, entregou seu cartão de visita e adotou um tom corporativo: “O Texas tem sido um grande estado para nós. Estamos muito felizes em ter mais uma loja aqui.” As solicitações subsequentes de entrevista foram rejeitadas.
‘Percepção de valor’
Com sua fiação exposta, pouca luz natural e sem uma playlist do Spotify, as lojas são, de fato, armazéns, com iluminação fluorescente e acústica ruim, projetadas para construção rápida. “O cliente entra pela porta e imediatamente tem a percepção de valor. Isso significa que, quando alguém chega, as compras discricionárias, ou não essenciais, assumem um peso diferente do que teriam na Kroger, na Target ou na Macy’s. As pessoas pensam: ‘Não me passaria pela cabeça comprar isso. Mas, se passasse, este seria o lugar para isso’”, disse Paco Underhill, autor de Why We Buy: The Science of Shopping (Por que compramos: a ciência do shopping).
Seria difícil argumentar que os compradores da Costco não sabem no que estão se metendo. Afinal, precisam levar até o carro o carrinho com a árvore artificial de dois metros, o painel solar, a caixa de aço para animais de estimação e o suprimento de três meses de minibolinhos belgas. “A ideia é que você não sinta que essas coisas são tentações, e sim que está fazendo um ótimo negócio. A questão é: ‘Você realmente precisa disso?’ Provavelmente, não”, afirmou Ayelet Fishbach, psicóloga comportamental da Escola de Negócios Booth da Universidade de Chicago.
c. 2024 The New York Times Company