Dois anos após invasão russa, Kharkiv se torna símbolo da resiliência ucraniana
Cidade a 40 km da fronteira com a Rússia é bombardeada constantemente, mas continua mantendo a rotina diária
Internacional|Marc Santora, do The New York Times
A máquina de expresso estava esquentando e Liliia Korneva contava dinheiro na cafeteria em Kharkiv onde trabalha quando uma bomba russa poderosa explodiu nas imediações, com um barulho ensurdecedor, e a derrubou no chão. “Não dá para descrever a sensação; foi absolutamente aterrador”, contou a jovem de 20 anos. Ela não se feriu, embora o pátio onde caiu o explosivo tenha sido destruído e um homem que passava de bicicleta tenha morrido, segundo as autoridades municipais.
No dia seguinte, o café já reabrira. Kharkiv, segunda maior cidade da Ucrânia, também está aberta para negócios, apesar da campanha de bombardeios, que está entre as mais violentas de toda a guerra, e do medo cada vez maior de que o inimigo possa lançar uma ofensiva renovada para retomá-la.
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Os ataques destruíram as três principais centrais elétricas que a alimentam, mas a população continua a viver e trabalhar com apenas algumas horas de energia por dia, normalmente imprevisíveis. Mais de cem escolas foram danificadas ou destruídas, mas as aulas continuam, nas entranhas das estações de metrô. Dezenas de unidades do corpo de bombeiros e de paramédicos viraram escombros, colocando os socorristas em risco diário, o que não impede que continuem fazendo seu trabalho. “Quando cai um foguete, levamos de três a quatro horas para limpar todo o vidro e liberar as vias centrais. Na manhã seguinte, é como se nada tivesse acontecido”, explicou Andrii Dronov, de 39 anos, vice-comandante-geral do Corpo de Bombeiros de Kharkiv.
Mas, com a intensificação dos ataques, muito se questiona em relação a quanto tempo a cidade situada a 40 km da fronteira russa consegue se aguentar sem a ajuda de defesas aéreas mais robustas. Desde março, as investidas russas são incessantes, executadas pela primeira vez com uma das armas mais letais de seu arsenal: as poderosas bombas planadoras (ou glide bombs), lançadas por caças, despejando centenas de quilos de explosivos de uma só vez. “É uma estratégia de intimidação para forçar os moradores a sair de casa, desalojar o maior número possível de pessoas. O objetivo é destruir a própria cidade”, disse Ihor Terekhov, prefeito de Kharkiv, em entrevista recente, concedida em local secreto, já que seu gabinete é um dos alvos.
Segundo as autoridades ucranianas, o volume de mísseis lançados nessa cidade de 1,3 milhão de habitantes desde janeiro é maior do que praticamente o dos dois anos anteriores, ou seja, desde o início da guerra; por isso, ordenaram a evacuação obrigatória dos vilarejos a leste devido ao aumento da violência na fronteira.
Em meados de abril, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, se tornou o primeiro membro do alto escalão do Kremlin a sinalizar que Moscou tem a intenção de tomar Kharkiv, dizendo que a cidade “tem um papel importante” no plano de Vladimir Putin de criar uma “zona de proteção” ao longo da fronteira. Analistas, aliás, notaram um aumento significativo de atividades militares na área.
Se a Rússia está realmente pensando em fazer uma investida ali, ninguém sabe; talvez esteja simplesmente tentando exaurir as tropas ucranianas, forçando-as a reforçar as defesas em uma nova frente, e ao mesmo tempo insuflar o pânico na população da cidade. Para os moradores, a especulação só faz aumentar a ansiedade de viver sob bombardeios diários. Em 22 de abril, por exemplo, eles viram o inimigo atingir a principal torre de televisão com um míssil em plena luz do dia, jogando a parte superior da estrutura de quase 245 metros de altura no chão em uma nuvem de poeira e metal retorcido.
Mas o maior medo atualmente é das imensas bombas planadoras que Moscou tem em abundância, equipadas com asas e sistemas de orientação. De fato, os russos as modificaram recentemente para que tenham autonomia de quase cem km, colocando a população de Kharkiv e outras cidades ao seu alcance pela primeira vez. Segundo as autoridades locais, pelo menos 15 explosivos desse tipo acertaram a cidade no último mês.
Com o suprimento de armas de defesa aérea minguando há semanas, as cidades ucranianas se tornaram mais vulneráveis, situação que o governo central espera começar a remediar com o pacote de assistência militar de US$ 60 bilhões aprovado pelo presidente dos EUA, Joe Biden.
Enquanto isso, os moradores tentam manter um senso de ordem para lidar com o caos e a incerteza da guerra. A cratera aberta no pátio do café de Korneva, por exemplo, foi fechada, as janelas sem vidraça, lacradas, as árvores atingidas, aparadas e o playground, reparado. Ela voltou a preparar expressos, mesmo que a clientela tenha diminuído.
Em meados de abril, uma equipe do “The New York Times” percorreu a cidade com os paramédicos e bombeiros, observando a rotina diária e conversando com moradores e autoridades, e deu para perceber a ampla gama de emoções que toma conta da população. Não há explicação simples para a sensação de conviver dia a dia com a ameaça de morte, sabendo que um míssil disparado na Rússia pode atingir qualquer ponto da cidade em menos de um minuto. “Ninguém sabe se vai sobreviver para ver o novo dia, mas, apesar de tudo, vivemos, trabalhamos e amamos muito nossa cidade”, afirmou o prefeito.
O êxodo das primeiras semanas de guerra – quando a artilharia atacava dia e noite sem parar, e a população, que até então era de dois milhões, caiu para 300 mil – não se repetiu. Depois que os russos foram expulsos de praticamente toda a região, depois da contraofensiva do fim de 2022, mais de um milhão voltou para casa. “Senti muita saudade. É aqui que tenho planos, sonhos e ambições”, revelou Anna Ivanova, estudante de 19 anos que fugiu para a Finlândia, mas voltou assim que o inimigo foi expulso.
Recentemente, um foguete atingiu a residência de uma amiga de sua mãe – mas, em vez de fugir, passou a morar na casa da outra, e nenhuma das duas pensa em ir embora. “Vou usar uma expressão bem batida: ‘Kharkiv é inquebrantável.’ Mas dá para ver que muita gente está exausta.”
Amil Nasirov, vocalista de 29 anos da banda de sucesso Kurgan & Agregat, afirmou: “Dá medo de viver, de aproveitar a vida. Você ouve a explosão à noite, aí de manhã vai ver o estrago e percebe que não foi longe, só uns 700, 800 metros de distância. É uma loucura.”
Ele tinha acabado de assistir à estreia de um filme nacional – “Rock, Paper, Grenade”, história de amadurecimento na Ucrânia dos anos 90 – em uma sala lotada. O shopping onde se encontrava o cinema foi destruído por um míssil em março de 2022. Reconstruído e agora alimentado por geradores, estava supercheio em uma tarde de domingo recente. Tirando os alarmes aéreos, constantes e geralmente ignorados, poderia muito bem ser o cenário de qualquer cidade europeia em tempos de paz. “O mais terrível é que as pessoas se acostumam com os bombardeios, que vão das 11 da noite até uma da manhã. O que é isso? E por que deveríamos nos acostumar?”, comentou.
A área mais atingida é o bairro de Saltivka, no nordeste da cidade, onde ficava a linha de frente no início do conflito, os prédios em ruínas como prova da destruição infligida pelas tropas russas antes de serem forçadas a sair. Mas a verdade é que nenhuma região foi poupada da violência. Às margens dos bulevares do centro antigo, onde se encontrava uma combinação fascinante de estilos arquitetônicos – de estruturas neoclássicas do século XVIII a edifícios construtivistas da era soviética –, agora se veem as fachadas elaboradas marcadas por estilhaços, o concreto ressequido pelo fogo. Uma casa pode estar intacta, mas do sobrado ao lado não restou nada.
A artista Dina Chmuzh pinta as palavras dos poetas ucranianos do passado e do presente nas tábuas de madeira que agora cobrem muitas das janelas quebradas, que ela compara com um tipo de armadura. “A impressão é a de que a cidade está tentando se resguardar.”
Em sua opinião, se soubesse mais sobre a história da cidade, a população se mostraria ainda mais resiliente. “Ela foi o centro do movimento nacionalista ucraniano, no início do século XX, e palco das campanhas sangrentas de Josef Stálin para sufocar o desejo de independência. Mesmo quando você acha que não vai aguentar mais, ainda assim encontra forças para continuar, apesar da dor.”
c. 2024 The New York Times Company