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Dois anos de Alan Kurdi: crianças ainda são dizimadas pela guerra

"Deus lançou uma luz para acordar o coração das pessoas ao redor do mundo", diz pai de menino que se tornou símbolo de crise de refugiados 

Internacional|Ana Luísa Vieira, do R7

Alan Kurdi morreu aos três anos de idade afogado no mar entre a Turquia e a Grécia; foto da criança na praia comoveu o mundo
Alan Kurdi morreu aos três anos de idade afogado no mar entre a Turquia e a Grécia; foto da criança na praia comoveu o mundo

"Não há um único dia em que eu não chore pela minha família": é assim que o sírio Abdullah Kurdi descreve a própria vida nos últimos dois anos. Em 2 de setembro de 2015, uma foto de seu filho Alan Kurdi, que morreu aos três anos de idade afogado no mar entre a Turquia e a Grécia, comoveu o mundo e se tornou um símbolo do drama enfrentado por milhares de pessoas que fogem da guerra em seus países. Mais que isso, pôs em evidência a situação infeliz das crianças que são obrigadas a passar por esses conflitos.

Em entrevista ao R7, Abdullah manifesta sua indignação ao constatar que, mesmo após a imagem de Alan de bruços sobre a faixa de areia ser amplamente divulgada na internet, pouca coisa mudou em relação à Síria e seus refugiados.

— A história do Alan não é diferente da história de outras crianças na Síria, mas eu acredito que Deus tenha lançado uma luz sobre ele para acordar o coração das pessoas ao redor do mundo. Infelizmente, as crianças continuam morrendo todos os dias, a guerra ainda está acontecendo e a comunidade internacional falhou: as pessoas apenas assistem às outras se matarem e continuam com suas vidas.

O menino Alan estava em um bote de 17 refugiados junto com o pai, a mãe e o irmão Ghalib, de 5 anos. A embarcação virou nas proximidades do balneário turco de Bodrum e somente Abdullah — que ainda vive na região da guerra civil — sobreviveu. A família pretendia chegar à Turquia e, de lá, seguir viagem até o Canadá — onde vivem alguns parentes. 


Acesso à educação e trabalho infantil

Alan Kurdi nasceu em meio à guerra na Síria; crianças sofrem com educação precária e trabalho infantil
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De acordo com relatório divulgado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 28 milhões de crianças encontram-se atualmente deslocadas dentro e fora dos seus países devido a conflitos e violência. Os desafios enfrentados por esses meninos e meninas vão desde problemas de saúde até a carência de uma estrutura familiar — passando por educação precária e trabalho infantil, conforme explica Bree Akesson, professora assistente no Centro de Pesquisa sobre Crianças e Famílias da Universidade Wilfrid Laurier, no Canadá.


— As crianças refugiadas que se matriculam em escolas são pouquíssimas. No Líbano, onde faço pesquisas com famílias de sírios refugiados, metade das 500 mil crianças em idade escolar (entre 3 a 17 anos de idade) permanecem fora da escola. A educação é precária especialmente entre adolescentes de 15 a 18 anos, com apenas 3% matriculados no ensino médio público. Uma das grandes barreiras para que esse cenário seja modificado é ainda o trabalho infantil, já que as famílias refugiadas ou em situação de guerra priorizam as despesas básicas de casa e de sobrevivência em vez da educação de seus filhos.

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Para Bree, a situação é grave especialmente para crianças como o próprio Alan Kurdi — que nasceu com a guerra já em curso. Os bebês, segundo a especialista, podem ser afetados pelo que suas mães sentem mesmo antes de virem ao mundo.

— Há estudos que relacionam o estresse experimentado por uma mulher durante a gestação a uma maior probabilidade de parto prematuro e baixo peso da criança no momento do nascimento. Prematuridade e baixo peso, por sua vez, são associados a maiores problemas de saúde para as crianças em seu processo de crescimento. Por esses diversos fatores, um bebê nascido em um ambiente estressante como a guerra pode precisar de mais apoio psicológico de seus pais. Mas esses pais, geralmente, não conseguem dar a atenção devida aos filhos, porque estão lidando com seus desafios individuais no contexto da guerra.

Abdullah Kurdi relembra os próprios dramas ao criar os filhos em meio ao conflito na Síria: “Imagine-se em uma situação de guerra em que todos os dias há bombardeios. Como um pai, é horrível ver seus próprios filhos chorar nesses momentos. Eles corriam até mim e colocavam suas cabeças sob o cobertor da cama para não ouvir as explosões”, relata.

Desafios na integração

No que diz respeito à reintegração social e recuperação de crianças refugiadas — especialmente aquelas que vivenciaram situações de guerra —, o mais importante é garantir que não só elas recebam todo o auxílio psicológico necessário, como suas famílias também, afirma Bree Akesson.

— Quando falamos sobre a reintegração dessas crianças, temos que falar sobre suas famílias como um todo e o ambiente em que essas pessoas vivem. E isso significa não só ajudar os pais, mas outros parentes também. Esse é um problema nos programas de acolhimento de refugiados, que tendem a se concentrar apenas na família nuclear: mãe, pai e filhos. Toda a extensão de uma família — avós, tias e tios — pode auxiliar as crianças e dar a elas a noção de que seus parentes formam uma unidade de apoio. 

Para Vivianne Reis, fundadora e porta-voz da ONG IKMR (I Know My Rights, ou Eu conheço meus direitos, em tradução livre), que atende crianças refugiadas no Brasil, a conscientização da população local a respeito da realidade enfrentada por esses meninos e meninas também é fundamental: “É importante que essas crianças sejam vistas justamente como crianças — antes que as pessoas pensem em terrorismo, em parasitas, em homens-bomba. A noção de criança tem que vir em primeiro lugar, e ela está acima da nacionalidade daquele indivíduo”, aponta. No País, onde 9.552 refugiados foram reconhecidos em 2016, cerca de 668 são crianças de 0 a 12 anos e 191 são adolescentes de 12 a 17 anos, de acordo com levantamento do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados).

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Abdullah e Tima Kurdi iniciaram fundação que atende crianças vítimas de conflitos
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Tima Kurdi, tia de Alan e irmã de Abdullah Kurdi, vive no Canadá há 26 anos e também falou com exclusividade ao R7. Na opinião dela, a comunidade internacional falha ao tentar encontrar os vilões do conflito na Síria.

— O que eu vejo na mídia são publicações culpando o presidente Bashar al-Assad ou os rebeldes, quando, na verdade, dentro da própria Síria há centenas grupos extremistas brigando entre si e matando civis. Eu acredito que isso só prolonga o conflito e faz novos refugiados e vítimas inocentes. Há muita ajuda aos campos de refugiados hoje em dia, isso é ótimo, mas o que precisamos é que os líderes mundiais parem de apontar seus dedos um para o outro e foquem em encontrar uma solução pacífica para a guerra.

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O próprio Abdullah endossa: “Minha mensagem aos líderes mundiais é: por favor, sentem-se ao redor de uma mesa e conversem sobre um jeito de devolver a paz à Síria. Só assim as famílias vão poder voltar às suas casas e reconstruir suas vidas”. Desde que perdeu sua família de forma trágica enquanto tentava chegar à Turquia, ele passou a viver como refugiado em Erbil, no Curdistão, depois que o presidente do país lhe ofereceu asilo. Lá, presta auxílio em centro de acolhida para refugiados e começou, com a ajuda da irmã, sua própria fundação — a Kurdi Foundation —, que atende crianças vítimas de conflitos.

— Quero que as pessoas ouçam as histórias dos refugiados. A guerra é suja e são os pobres que pagam o preço. Sem nenhum poder de decisão nesses conflitos, muitas vezes aceitamos que a única opção é tentar levar nossas famílias para um lugar mais seguro.

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