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Entenda os motivos históricos da crise política e econômica no Haiti

Dificuldades herdadas do período da colonização e governos autoritários acentuam problemas do país mais pobre das Américas

Internacional|João Melo, Do R7*

Escravização do povo haitiano deixou sequelas até hoje na população do país
Escravização do povo haitiano deixou sequelas até hoje na população do país

assassinato do presidente do Haiti, Jovenel Moïse, no dia 7 de julho, foi mais um acontecimento trágico da crise política, social e econômica enfrentadas pela nação caribenha há anos. Esses e outros problemas que são observados hoje têm raízes históricas profundas.

Quando ainda era conhecido como São Domingos, franceses e espanhóis levaram cerca de 450 mil pessoas escravizadas na África para o país. Essa situação a impulsionou uma série de rebeliões por parte da população de escravos, o que culminou no início da Revolução Haitiana, em 1791.

Movimentos espalhados por todo o país e liderados principalmente por Toussaint Louverture e Jean Jacques Dessalines influenciaram levantes em diversos locais do país. Até que, no ano de 1794, a força das manifestações dos caribenhos e os desdobramentos da Revolução Francesa resultaram na abolição da escravidão em todas as colônias francesas, entre elas, São Domingos.

Após a prisão e morte de Dessalines em uma prisão na França, Toussaint assumiu sozinho a liderança dos movimentos contra os franceses e, após um longo período de luta, a independência do país foi declarada no dia 1° de janeiro de 1804. A partir desse momento, o nome Haiti passou a ser adotado.


“O processo de independência do Haiti colocou o país numa dupla situação. Se por um lado se tornou um referencial a ser seguido pelos povos escravizados em prol da liberdade e da dignidade humana, por outro lado causou um grande temor por parte do imperialismo euro-americano de que isso poderia iluminar outras populações para acabar com os projetos neocoloniais que esses países mantinham em várias partes do planeta”, destaca Handerson Joseph, antropólogo haitiano naturalizado brasileiro e professor do Departamento de Antropologia da UFRGS.

Dificuldades econômicas

O especialista ressalta que os desdobramentos da revolução no Haiti levaram problemas financeiros para o local, como uma dívida que teve de ser inicialmente paga ao governo francês para que o país independente fosse reconhecido diplomaticamente.


Com o passar dos anos, empréstimos bancários e juros altos cobrados por bancos da França, dos EUA e da Alemanhã aumentaram ainda mais os valores a serem quitados pelo país do Caribe.

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O Haiti conseguiu terminar de pagar essas dívidas relacionadas ao seu reconhecimento como república independente somente por volta de 1947, o que causou danos relevantes à economia local.

“Depois da independência até os dias atuais, o Haiti convive e enfrenta um processo de neocolonização. O país não teve nenhum descanso do imperialismo euro-americano, o que muito contribuiu para aprofundar as suas crises políticas e econômicas”, enfatiza o doutor em Antropologia Social pela pelo Museu Nacional da UFRJ.

Instabilidade política

Além das dificuldades econômicas, o Haiti precisou conviver com problemas políticos ao longo da sua história, tendo como um dos períodos mais marcantes a era dos Duvalier, família que estabeleceu um regime ditatorial muito intenso no país.

François Duvalier, também conhecido como Papa Doc, chegou à presidência do país em 1961 e logo tomou a decisão de organizar uma força armada chamada Tonton Macoute para reprimir os seus opositores.

“Papa Doc contou com o apoio norte-americano a esse regime até o ano de 1961, quando insatisfações relacionadas à política do presidente haitiano culminaram no rompimento desse suporte. Depois disso, uma nova Constituição, que entrou em vigor em 1964, autorizava a presidência vitalícia de Duvalier”, explica Joseph.

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François Duvalier morreu em 1971 e o substituto automático do cargo foi o seu filho, Jean Claude Duvalier, conhecido como Baby Doc, por continuar aplicando as mesmas estratégias de repressão do pai. 

Jean Cloude ficou no cargo executivo mais alto do país por 15 anos e autoridades haitianas estimam que, durante o seu mandato, foram desviados um equivalente a R$ 517 milhões na cotação atual. De acordo com o professor da UFRGS, Baby Doc levou o Haiti a uma decadência maior do que o governo do seu pai.

Uma revolta organizada por movimentos de oposição e também pela própria população, que estava saturada das crises causadas pela família Duvalier, derrubou Jean Cloude em 1986 e colocou fim a um período ditatorial de 25 anos.

Moise no poder

Em um panorama recente, o presidente Jovenel Moïse também contribuiu para o histórico político conturbado do país caribenho. A tentativa de, neste ano, tentar mudar a constituição para continuar no poder é um dos exemplos das atitudes questionáveis do presidente assassinado.

“O governo de Moïse também era marcado pelo autoritarismo, pelas práticas anti-democráticas e pela militarização do aparelho estatal. Em menos de cinco anos, ele contribuiu com a destruição de várias instituições estatais, principalmente o poder legislativo e o judiciário”, ressalta o antropólogo.

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Handerson completa destacando que foi também durante o mandato de Jovenel que aconteceu um dos maiores escândalos de corrupção da última década, o PetroCaribe. Entre 2008 e 2018, a Venezuela criou um programa para vender derivados de petróleo para países da América Latina e do Caribe por preços vantajosos.

No entanto, Relatórios divulgados pelo Tribunal de Constas do Haiti apontaram que, desde o início do acordo, autoridades haitianas desviaram mais de R$ 10 bilhões dos valores que deveriam ter como destino a compra de petróleo.

Instabilidade política afeta diretamente a vida da população do Haiti
Instabilidade política afeta diretamente a vida da população do Haiti

“Esses processos antidemocráticos, de impunidade e de corrupção têm implicações drásticas para a população haitiana, uma vez que limitam a liberdade das pessoas, desestabilizam a economia do país e aumentam a repressão e a violência.”

O especialista ainda afirma que boa parte da comunidade internacional não cogitava ir contra os modelos políticos e econômicos de Moïse, o que auxiliou na sua permanência no poder.

“A Comunidade Internacional via em Moïse um chefe de Estado ideal e desejado para manter o país sob o comando imperialista, dado que seu posicionamento político-econômico estava alinhado com o liberalismo norte-americano”, enfatiza o professor da UFRGS.

Assassinato de Moise e a continuidade no Haiti

“O assassinato de Moïse pode causar ainda mais instabilidade política e insegurança na sociedade haitiana. Se as forças de segurança pública não garantiram a vida e a integridade física do presidente, imagina para a sociedade civil. Isso transmite uma sensação de impotência e uma mensagem de abandono à população”, diz Handerson Joseph.

Nos últimos anos o haiti já vem registrando altos índices de violência e pelas ruas da cidade, principalmente nas regiões que são dominadas por grupos armados que frequentemente entram em conflito entre si.

Para o antropólogo haitiano naturalizado brasileiro, o primeiro passo a ser dado pelos políticos do país caribenho deve ser em direção a um projeto nacional que tenha como objetivo principal a garantia da democracia no local, com foco em governos transparentes e que implantem projetos sociais para os povos mais carentes.

Resgate da democracia e do sentido de igualdade podem ajudar o país na sua continuidade
Resgate da democracia e do sentido de igualdade podem ajudar o país na sua continuidade

“Para isso, é importante também que a Comunidade Internacional reavalie sua atuação no país. A prioridade da população deve prevalecer em detrimento dos interesses ideológicos e políticos internacionais.”

Segundo o especialista, o Haiti precisa resgatar o sentido de igualdade, coletividade e liberdade que estão na raiz da população haitiana e ficaram bastante aflorados durante os movimentos do final do século XVIII.

“A democracia é incompatível com o autoritarismo, a oligarquia, a violência e a impunidade. Não há democracia sem justiça social e segurança alimentar e comunitária”, destaca.

*Estagiário do R7 sob supervisão de Pablo Marques

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