Fuga na 'cidade de sangue': facções do Brasil ocupam o Paraguai
Influência do PCC cresce no país vizinha, cujas instituições deficientes não são capazes de combater este e outros grupos criminosos brasileiros
Internacional|Do R7
Luis Alves da Cruz acordou por volta das 3h da manhã com uma movimentação na ala da prisão paraguaia que ele chamava de casa.
Traficante de drogas de baixo escalão, o brasileiro viu colegas presos vestidos da cabeça aos pés de preto.
"Estamos saindo", disse um deles. "Você vem?"
Em minutos, Cruz estava entre os 75 presos que fugiram da detenção nas primeiras horas de 19 de janeiro, em uma das fugas mais audaciosas da história do Paraguai.
Os fugitivos eram membros do Primeiro Comando da Capital, conhecido como PCC, maior facção criminosa do Brasil. A fuga ressalta a crescente influência da organização no Paraguai, cujas instituições deficientes não são capazes de combater o PCC e outros grupos criminosos brasileiros que têm se instalado por lá.
Funcionários do presídio na cidade de Pedro Juan Caballero, perto da fronteira do Paraguai com o Brasil, sabiam o que o PCC estava planejando, segundo a ministra da Justiça do Paraguai, Cecilia Pérez. Ela disse que alguns eram cúmplices, enquanto outros pareciam ter medo de represálias. Trinta e dois funcionários da prisão, incluindo o diretor, estão presos.
"Estamos enfrentando uma crise de segurança cujo epicentro está no sistema prisional", disse Cecilia Pérez à Reuters.
A Penitenciária Regional Pedro Juan Caballero não respondeu a um pedido de comentário.
Em fuga espetacular, 40 eram brasileiros
Quarenta dos fugitivos, inclusive Cruz, são brasileiros. Até agora, apenas 11 prisioneiros foram recapturados. Cruz foi preso em poucos dias perto da cidade brasileira de Dourados (MS). A Reuters obteve acesso exclusivo ao depoimento que ele deu à polícia brasileira.
Cruz disse que os guardas da prisão paraguaia ajudaram a facilitar a fuga. Ele afirmou que estava entre os que fugiram por um túnel cavado pelos prisioneiros com espátulas e iluminado com lâmpadas pregadas nas paredes de terra com garfos. A passagem estreita e enlameada começou em uma cela da prisão ocupada pelo PCC e se estendia até pouco depois da parede externa da prisão.
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Prisioneiros mais graduados não precisaram se sujar, disse Cruz no depoimento; eles simplesmente saíram pela porta da frente. Outros prisioneiros recapturados confirmam sua declaração, diz a polícia paraguaia.
"Isso (fuga) demonstra que o PCC faz o que quer, quando quer, e que o Estado paraguaio não representa obstáculo aos seus planos", disse Juan Martens, analista de segurança e acadêmico da capital Assunção, que estudou a atuação do PCC no Paraguai.
"Se quiserem escapar, eles o fazem", completou.
Situado entre Brasil, Argentina e Bolívia, o Paraguai é um dos principais produtores de maconha do mundo e um ponto importante de transporte para cocaína andina. O Paraguai é pobre, com um PIB per capita parecido com o da Namíbia, e está atrás apenas da Venezuela como o segundo país mais corrupto da América do Sul, de acordo com o Índice de Percepção da Corrupção de 2019 da Transparência Internacional.
Por isso, tornou-se uma base operacional atraente para grupos criminosos brasileiros, incluindo o PCC de São Paulo, o Comando Vermelho do Rio de Janeiro e uma facção de Porto Alegre chamada Bala na Cara.
Autoridades reconhecem que facções brasileiras operam quase que impunes no país e se tornaram uma força formidável dentro e fora da prisão. O PCC, por exemplo, recruta ativamente ou "batiza" prisioneiros não afiliados para entrada no grupo, uma prática que lhe permitiu expandir rapidamente, de acordo com Gilberto Fleitas, chefe de investigações criminais da Polícia Nacional do Paraguai.
PCC faz recrutamento agressivo no país
Ele estimou que atualmente existem 500 membros do PCC nas prisões do Paraguai, um número que dobrou desde o ano passado, graças ao recrutamento agressivo do PCC. Um colega de Fleitas, Ruben Paredes, acredita que o número seja ainda maior, com cerca de 10% dos 16.000 presos do Paraguai pertencentes a gangues brasileiras. Muitos outros criminosos operam além dos muros das prisões, disse Paredes, subornando parlamentares e policiais corruptos.
"Pelo menos na prisão eles estão confinados", afirmou Paredes, chefe de investigações da Polícia Nacional na região densamente povoada que inclui a capital, Assunção. "Lá fora, eles fazem o que bem entendem."
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Apelidada de "cidade de sangue", Pedro Juan Caballero provou ser um local particularmente atraente para as quadrilhas de traficantes do Brasil, segundo autoridades. A cidade se mistura quase que de maneira imperceptível ao município brasileiro adjacente de Ponta Porã. A Reuters não viu postos de controle da polícia ou barreiras separando as duas cidades. Pessoas de ambos os lados da fronteira atravessam com facilidade.
Pequenos aviões que transportam cocaína boliviana frequentemente pousam em pistas remotas nos arredores de Pedro Juan Caballero, disseram autoridades brasileiras e paraguaias à Reuters. De lá, segundo as fontes, as drogas passam pelo sul do Brasil e entram na Europa, onde a demanda está crescendo.
As consequências podem ser vistas na crescente quantidade de corpos em Pedro Juan Caballero, enquanto as gangues lutam para controlar as rotas de tráfico, disseram autoridades. O prefeito José Carlos Acevedo disse que houve mais de 150 homicídios no ano passado na cidade de 120.000 pessoas. Ele disse que os moradores vivem com medo das gangues, que têm zombado do aparato de segurança.
"A polícia é completamente corrupta", disse Acevedo.
A força policial da cidade, que não se reporta a Acevedo, não respondeu aos pedidos de comentários.
História criminal
A trajetória criminosa de Cruz, o fugitivo que foi recapturado, destaca os problemas que o Paraguai enfrenta ao lidar com a invasão das facções brasileiras.
Nascido na pobre e isolada Joselândia, no Maranhão, Cruz disse à polícia que se mudou para Sorriso, no Mato Grosso, aos 10 anos de idade.
Em 2012, ele foi preso por vender drogas, mas beneficiado pelo regime semiaberto em 2015, não voltou mais. De lá, Cruz afirmou em seu depoimento que cruzou a fronteira para Pedro Juan Caballero, onde foi preso por acusações de tráfico de drogas em 2016 e enviado para a prisão da cidade.
Na detenção, ele decidiu ser batizado como membro do PCC e começou a trabalhar como um dos funcionários internos da quadrilha, cuidando de deveres administrativos e ajudando a resolver disputas, de acordo com seu depoimento.
Cruz era um prisioneiro de baixa patente, de acordo com um policial brasileiro que pediu para não ser identificado.
Mas a prisão o colocou em contato com criminosos de peso.
Mais de uma dúzia dos principais assassinos regionais do PCC vivia no bloco de celas próximo de Cruz, segundo Fleitas, chefe de investigações criminais.
Eles também estavam entre os fugitivos. Mas, ao contrário de Cruz, que provavelmente passará o resto de sua sentença em uma prisão brasileira, eles continuam fugindo, disse a polícia.
Inteligência sabia de possível fuga
Os primeiros relatórios de inteligência sobre uma possível fuga da prisão surgiram em meados de dezembro.
Em 16 de dezembro, o diretor penitenciário nacional do Paraguai, Joaquín González Balsa, escreveu uma carta aos investigadores do crime organizado em Assunção dizendo que "as informações coletadas pelo departamento de inteligência sugerem que pode haver um resgate de presos de grupos criminosos", de acordo com uma cópia dessa carta vista pela Reuters. González Balsa foi substituído após a fuga.
Cecilia Pérez, a ministra da Justiça, disse que o diretor da prisão também apresentou informações semelhantes, levando-os a acreditar que ele era digno de confiança. Segunda ela, uma varredura subsequente nas instalações por agentes penitenciários e policiais em dezembro não mostrou sinais do túnel.
"Um dos prisioneiros que foi recapturado disse que eles cavaram o túnel após a busca", disse a ministra. "A empresa que monitora as câmeras de segurança não nos alertou para nada, porque eles dizem que não viram nada.”
'Não há como reagir'
Gustavo Sánchez, representante da empresa de segurança SIT, sediada em Assunção, afirmou à Reuters que forneceu ao Ministério da Justiça informações relacionadas à noite da fuga. Ele se recusou a dar mais detalhes.
Cecilia Pérez disse que, após a fuga, o Paraguai vai intensificar a cooperação com o governo do presidente Jair Bolsonaro, que tenta combater facções atingindo suas finanças e enviando os chefes para prisões federais de segurança máxima.
Fleitas, chefe de investigações criminais do Paraguai, duvida das chances de sucesso. Seu país está perdendo a batalha contra o PCC e outros grupos criminosos brasileiros, disse ele.
"Não há como alguém... possa reagir a isso", afirmou. "Eles identificam sua família, coagem seus parentes, juízes, promotores, policiais."