Kamala Harris planeja proibir a especulação de preços, mas a questão é complexa
Economistas dos EUA divergem sobre o impacto da prática sobre o aumento do valor dos alimentos, e culpam inflação
Internacional|Jim Tankersley e Jeanna Smialek, do The New York Times
Washington – O plano econômico da vice-presidente Kamala Harris para sua campanha presidencial inclui um argumento que responsabiliza a especulação das grandes empresas pelo preço alto dos alimentos – mensagem que, entre os eleitores indecisos, tem mostrado bons resultados nas pesquisas. O discurso foi adotado por grupos progressistas, que regularmente apontam a especulação de preços como uma das justificativas para a rápida inflação, ou pelo menos como um fator que contribui para o aumento rápido dos preços. Esses grupos aplaudiram o anúncio na noite de quarta-feira, dia 14, de que, no pronunciamento que faria na sexta-feira seguinte, Harris solicitaria uma proibição federal da especulação corporativa de preços nos supermercados.
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Mas os argumentos econômicos sobre esse tema são complexos. Os economistas citaram uma série de fatores que impulsionaram a alta dos preços na recuperação da recessão decorrente da pandemia, incluindo os atrasos nas cadeias de suprimento, uma mudança repentina nos padrões de compra do consumidor e o aumento da procura do cliente, alimentado pelo estímulo do governo e pelas taxas baixas do Sistema de Reserva Federal. Segundo a maioria dos economistas, essas questões estão muito mais relacionadas à elevação dos preços nesse período do que ao comportamento das empresas.
Os economistas do governo Biden constataram que o comportamento corporativo contribuiu para elevar o custo dos alimentos nos últimos anos – mas que outros fatores desempenharam um papel muito mais importante. O anúncio da campanha de Harris no dia 14 citou a consolidação da indústria da carne como um fator que impulsiona o preço alto dos alimentos, mas as autoridades não responderam no dia seguinte às perguntas relacionadas às provas que Harris apresentaria ou sobre como sua proposta vai funcionar.
Há exemplos de empresas que nos últimos anos disseram aos investidores que conseguiram aumentar os preços para elevar seus lucros. Mas mesmo o termo “especulação de preços” tem significados diferentes para cada pessoa. Para algumas, reflete a prática das companhias de usar a escassez como uma oportunidade para aumentar os preços rapidamente, aproveitando um desequilíbrio entre a oferta e a procura para obter lucros enormes. Esse tipo de comportamento é comum – e até mesmo esperado – na economia, e geralmente se manifesta quando os produtos se tornam difíceis de conseguir.
Para outras, “especulação de preços” sugere que as empresas estão optando por produzir menos – mantendo alguma coisa intencionalmente em escassez – para que possam cobrar mais. Pelo menos em teoria, essa situação deveria ser temporária. Novos concorrentes entrariam no mercado e ofereceriam produtos a um preço acessível. Há também quem use o termo para indicar que as companhias têm aproveitado um momento de inflação rápida para aplicar um aumento de preços.
Preços em disparada
Para entender exatamente o papel que os lucros corporativos desempenharam na explosão inflacionária pandêmica, vale a pena relembrar como a inflação se desenvolveu.
Os preços dispararam a partir de 2021, quando o fechamento de fábricas e os problemas na cadeia de suprimentos provocaram a escassez de alguns produtos – incluindo carros e móveis –, ao mesmo tempo que os auxílios financeiros na pandemia e a mudança no comportamento dos consumidores nesse período ajudaram a alimentar uma alta procura por bens físicos. A inflação permaneceu elevada em 2022, agravada pelo início da guerra da Rússia na Ucrânia, que contribuiu para elevar o preço dos combustíveis e dos alimentos. Naquele ano e no começo de 2023, a alta se estendeu e afetou o valor de diversos serviços.
O aumento nos preços foi particularmente doloroso em categorias como os alimentos. No auge, em agosto de 2022, o custo dos alimentos para consumo doméstico subiu 13,5 por cento em relação ao ano anterior. E isso é importante para o lar e para o eleitor de modo geral. Estudos econômicos sugerem que o valor dos alimentos – que os consumidores compram regularmente, com os preços claramente visíveis – desempenha um papel significativo na formação da opinião dos americanos sobre a inflação.
Mas esta, no último ano, desacelerou acentuadamente e agora quase recuperou o ritmo que tinha antes da pandemia. O índice de preços ao consumidor subiu 2,9 por cento no ano até julho, segundo dados da semana retrasada, sendo a primeira vez que a inflação caiu abaixo de três por cento desde 2021.
Enquanto os economistas analisam novamente por que a inflação atingiu um ritmo tão rápido em seu auge, alguns apontam para a especulação de preços. É nítido que os lucros das empresas aumentaram durante a pandemia. E, ao longo de 2022 e grande parte de 2023, as companhias falaram regularmente sobre o novo poder de precificação que tinham e como estavam tentando manter os clientes comprando mais produtos “premium” a preços mais elevados.
Os pesquisadores da Groundwork Collaborative, organização liberal de Washington, publicaram um relatório em janeiro no qual calcularam que a margem de lucro das empresas representava aproximadamente metade da inflação americana na segunda metade de 2023. Mas alguns economistas apontam que as companhias puderam lucrar tanto por uma razão: a procura dos consumidores era muito alta. Os esforços do Sistema de Reserva Federal e do Congresso para impulsionar os lares e os negócios durante a pandemia, como os auxílios de US$ 1.400 para indivíduos, que Biden assinou como parte do plano de resgate econômico no início de 2021, estimularam o consumo.
“Se os preços estão aumentando em média ao longo do tempo e as margens de lucro se expandem, isso pode parecer uma especulação de preços, mas na verdade é um indicador de um aumento amplo da procura. Essa grande elevação dos preços tende a ser o resultado de uma política monetária ou fiscal expansiva – ou de ambas”, afirmou Joshua Hendrickson, economista da Universidade do Mississípi, que escreveu com ceticismo sobre as afirmações de que o comportamento corporativo está impulsionando o aumento dos preços.
Ao confrontar a procura alta com a oferta escassa, a economia funcionou mais ou menos como era esperado, de acordo com vários economistas. Sem bens suficientes para satisfazer a grande procura, as empresas começaram a cobrar o máximo que podiam pelo que tinham para vender. A elevação dos preços incentivou as companhias a produzir mais, o que ajudou a recuperar a oferta e fez com que a inflação voltasse a esfriar. “O preço do ovo subiu no ano passado porque não havia uma quantidade grande do produto, e isso provocou um aumento na produção”, explicou Jason Furman, economista de Harvard que trabalhou no governo Obama.
Aumento salarial
Mesmo em produtos como alimentos, o aumento dos preços não foi exclusivamente resultado dos lucros das empresas. A pandemia também estimulou um aumento dos salários nominais dos trabalhadores, o que contribuiu para o aumento dos preços. Pesquisadores do Banco da Reserva Federal de Kansas City relataram no ano passado que o crescimento rápido do emprego na economia dos Estados Unidos e os aumentos salariais que o acompanharam foram os principais fatores para a elevação do preço dos alimentos.
Ainda assim, alguns economistas sugerem que, em um mundo no qual as crises de suprimento podem ser mais frequentes – em decorrência de guerras comerciais, instabilidade geopolítica e mudanças climáticas, entre outras causas –, o governo deveria encontrar maneiras de evitar que as empresas reajam a uma súbita falta de suprimentos com um aumento drástico dos preços.
Isabella Weber, economista da Universidade de Massachusetts em Amherst, observou que a escassez e o aumento do custo das matérias-primas durante a pandemia pareciam funcionar como uma ferramenta de coordenação: muitas empresas descobriram que podiam cobrar mais porque a concorrência fazia o mesmo, o que lhes permitiu manter ou até aumentar seus lucros. Segundo ela, isso pode estabelecer um precedente preocupante. Em crises futuras de ofertas, é possível que as empresas não sintam tanta urgência em solucionar rapidamente os problemas da cadeia de suprimentos, conscientes de que podem obter grandes lucros nesse meio-tempo.
E, por mais que seja provável que as empresas aumentem a produção e reduzam os preços em longo prazo – acabariam enfrentando a resistência dos consumidores ou perdendo para a concorrência –, mesmo um período temporário de inflação muito alta pode ser difícil para o cidadão comum. “Se os melhores momentos para as empresas acabarem sendo os piores para as pessoas, estas podem se sentir enganadas. Uma espécie de contrato social básico está se desintegrando”, disse Weber, que aplaudiu o plano de Harris para combater a especulação de preços nos supermercados.
Furman, por outro lado, afirmou que existe o risco de que as políticas destinadas a conter a especulação de preços das empresas impeçam o ajuste da economia. Se os preços não subirem em resposta à forte procura, as novas empresas não vão se sentir tão inclinadas a entrar no mercado para aumentar a oferta. “Não é uma política sensata, e acho que a maior esperança é que acabe sendo muita retórica e nenhuma realidade. Aqui não há vantagens, e sim algumas desvantagens.”
c. 2024 The New York Times Company