Latinos tentam entrar nos EUA sem visto para fugir da crise
Brasileiros estão entre as 10 nacionalidades que mais se arriscam cruzando o deserto para entrar ilegalmente
Internacional|Letícia Sepúlveda, do R7
A crise econômica impulsionada pela pandemia de Covid-19 tem gerado um aumento no fluxo migratório irregular de latino-americanos para os EUA. A jornada pelo deserto mexicano e os riscos de contratar o serviço de atravessadores, no entanto, fazem muitas vezes o sonho americano terminar bem longe da fronteira.
“A migração irregular é um negócio muito lucrativo para grupos criminosos e extremamente lucrativo para o crime organizado”, explica o professor de Relações Internacionais da PUC-SP e especialista em América Latina Arthur Murta.
As pessoas que se aventuram em deixar seu país de origem para entrar no território norte-americano ilegalmente correm muitos riscos. O professor da PUC ressalta que não são incomuns os relatos de vítimas de sequestro e de estupros praticados por 'coiotes', pessoas que são contratadas para fazer a travessia do deserto.
“As maiores ameaças desses deslocamentos não consistem nas ameaças naturais, mas sim na forma como o crime organizado se estrutura nessa travessia para os EUA. Somados a isso e aos ambientes inóspitos de desertos, rios e montanhas, abandonos acabam ocorrendo”, diz Murta.
Uma das questões cruciais da travessia é a entrada nos Estados Unidos pelo Rio Grande, fronteira natural do país com o México. No trecho, patrulhas norte-americanas atuam para que grupos de migrantes sejam dispersos; nesse processo, muitas pessoas se perdem no deserto.
Foi próximo dessa região que a brasileira Lenilda dos Santos, de 49 anos, foi encontrada morta em setembro, no sul da cidade de Deming, no estado americano do Novo México. Agentes da fronteira disseram que ela foi abandonada sem água e sem comida por um grupo que leva imigrantes de forma ilegal ao país. Situações como essa não são exceção e, quando não terminam em uma tragédia, podem resultar em um processo de deportação para o Brasil.
Migrantes brasileiros
O órgão de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos revelou que, de outubro de 2020 a agosto deste ano, 46.410 brasileiros foram detidos tentando entrar de forma ilegal no país. O número é seis vezes maior em relação ao verificado no período entre outubro de 2019 e setembro de 2020, quando 7.161 brasileiros foram detidos.
Anteriormente, o auge havia ocorrido em 2019, período em que cerca de 18 mil pessoas partiram do Brasil rumo aos EUA. Ainda que esse número seja expressivo, os brasileiros ocupam a sexta posição entre as nacionalidades mais detidas ao tentar entrar irregularmente em território norte-americano.
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“No caso do Brasil, é interessante pensar que a gente falava muito sobre esses deslocamentos ao longo dos anos 1990 e no começo dos anos 2000, quando o país não estava em uma boa situação econômica, e, a partir do momento em que o Brasil se recupera, a gente para de falar sobre isso.”
“Atualmente, a grande questão para a gente pensar nesse aumento de pessoas saindo do Brasil é a falta de perspectiva econômica. Isso é muito triste se a gente pensa que o perfil desse migrante brasileiro é jovem. Estamos falando de pessoas com idade economicamente ativa, ou seja, que seriam parte da força de trabalho no país.”
Para o especialista, a desvalorização da moeda brasileira diante do dólar traz a expectativa para o migrante de que, se receber um salário em dólar, poderá melhorar de vida e ajudar seus familiares que ficaram por aqui.
Rotas para os EUA
Além dos caminhos perigosos e bastante explorados na fronteira sul dos Estados Unidos, algumas pessoas se arriscam para entrar no país a partir de rotas alternativas.
Alguns migrantes optam por chegar de avião às Bahamas e depois seguem de barco até o estado da Flórida. Outra rota consiste na obtenção de um visto para entrar no Canadá e, a partir daí, cruzar a fronteira a pé.
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“Não ouvimos falar muito sobre essas rotas, porque são mais complexas e mais caras. No caso do Canadá, o visto é facilitado, uma vez que você tem o visto para os EUA. Existem muitos brasileiros que estão no Canadá e que não cruzam a fronteira porque não possuem esse documento, que nem permite a entrada por terra, apenas por via aérea."
"Já no caso das Bahamas, o voo não é barato e as redes para fazer a travessia de barco também são muito mais complexas”, explica Murta.
“No caso do México, são centenas de rotas, é uma rede muito mais estruturada e mais barata. Se pensarmos no brasileiro que tenta ir para os EUA, mesmo de maneira irregular, é alguém que tem algum capital. Já o centro-americano muitas vezes é uma pessoa que apenas saiu de casa, e inclusive indocumentada, é a migração do desespero.”
Crise migratória
O processo de migração irregular que leva a tantos riscos passa pelo desespero de quem enfrenta uma situação econômica difícil. “As pessoas estão sem perspectiva, não há um horizonte de melhora econômica, então, para muitos, a primeira opção é migrar. [...] o que faz uma pessoa enfrentar tantos riscos é saber que não existe a escolha de permanecer em seu país", explica o professor.
Em setembro deste ano, 49 migrantes, incluindo brasileiros,foram encontrados dentro de um caminhãotentando cruzar a fronteira do México com o estado do Texas.
A América Central registrou um fluxo migratório histórico com 147 mil migrantes indocumentados detectados no México de janeiro a agosto deste ano, triplicando o número de 2020. Além disso, apenas em julho, a fronteira dos EUA com o México registrou um recorde de 212 mil pessoas detidas pela agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras americana.
Em outro caso de grande repercussão da atual crise migratória do governo de Joe Biden, mais de 30 mil migrantes, a maioria haitianos, acamparam sob um viaduto na fronteira do México próximo ao estado do Texas, em uma situação de carência de serviços básicos. Para evitar a entrada no país, oficias dos EUA utilizaram cavalos e chicotes para dispersar a aglomeração, situação que foi duramente criticada pela comunidade internacional.
Governos Trump e Biden
“Outro ponto que se deve levar em consideração nesse processo atual de deslocamento é que havia uma expectativa de que a administração de Joe Biden pudesse flexibilizar algumas questões migratórias”, aponta o professor Murta, ao explicar que o governo de Donald Trump foi marcado por muitas barreiras em relação à chegada de estrangeiros.
Durante o governo do republicano, conhecido por sua política de “tolerância zero” na fronteira dos Estados Unidos com o México, milhares de crianças foram separadas de seus pais após entrarem irregulatemente no território.
Além disso, a maior promessa eleitoral de Trump foi a construção de um muro na fronteira sul do país. A medida foi cumprida parcialmente, com a construção de quase 640 quilômetros de barreira.
Em meio à crise migratória que ameaça sua popularidade, Joe Biden prometeu investir no sul do México e no norte da América Central para combater a migração forçada. Segundo ele, os EUA deram mais de US$ 600 milhões, o equivalente a R$ 3,3 bilhões, em assistência internacional a El Salvador, Guatemala e Honduras. Biden ainda afirmou que pediu ao Congresso US$ 861 milhões, cerca de R$ 4,7 bilhões, do orçamento de 2022 para a América Central.
Para Murta, entretanto, "o que estamos vendo no governo Biden é quase que uma continuação do que havia no governo Trump, inclusive envolvendo muitas deportações". De acordo com a OIM (Organização Internacional para as Migrações), mais de 7,5 mil imigrantes haitianos foram deportados dos EUA em um período de três semanas.