Policiais tentam recuperar Haiti de gangues que desestruturam a vida no país
Em Porto Príncipe, grupos armados estão matando, estuprando mulheres, queimando bairros e deixando centenas de milhares de pessoas famintas e em abrigos improvisados
Internacional|Frances Robles, do The New York Times
Porto Príncipe, Haiti – Como se os carros queimados, as marcas de tiros nos muros das escolas, as construções em ruínas e a desolação no centro de Porto Príncipe não bastassem para indicar as coisas terríveis que foram cometidas aqui, alguém fez questão de deixar um sinal ainda mais macabro: dois crânios humanos no meio da rua.
Um foi posto na ponta de uma vareta, o outro ficou no chão, em frente a um prédio do governo, aparentemente como recados ameaçadores dos membros de uma gangue aos policiais haitianos e quenianos que tentam restaurar a ordem no país: Saibam que quem manda nessas ruas somos nós.
Um dos oficiais estrangeiros, de capacete e colete à prova de balas que se encontrava em um veículo blindado norte-americano, tirou uma foto da cena com o celular enquanto o colega manobrava perto das cabeças.
Eu e um fotógrafo do “The New York Times” acompanhamos a patrulha de uma missão de segurança multinacional liderada pelos africanos na capital haitiana – e, durante o tour de seis horas, vimos o automóvel ser basicamente ignorado pelas pessoas nas ruas, e vaiado algumas vezes. Chegou até a ser alvejado.
A patrulha nos deu uma ideia dos imensos desafios que as forças quenianas enfrentam na tentativa de tomar o controle da cidade dos grupos armados que acabaram com a vida no país, matando indiscriminadamente, estuprando, incendiando bairros inteiros e deixando milhares de famintos em abrigos improvisados.
A rota escolhida revelou muitas estruturas demolidas pelas autoridades, na tentativa de eliminar os esconderijos das gangues. Fomos também ao porto – entrada principal de alimentos, remédios e outros produtos no Haiti –, o tempo todo sob alerta da possível presença de atiradores nos telhados. No cais, os estivadores carregavam a balsa de uma rota nova para enviar mantimentos para as outras províncias por mar, evitando a passagem pelos redutos criminosos em terra.
Os oficiais, cujos supervisores não têm permissão de conceder entrevista, disseram que recentemente intensificaram as operações para “arrancar” os criminosos de vários pontos. No dia seguinte, um operário ficou ferido ao tomar um tiro na doca; horas depois, os quenianos se envolveram em uma troca de tiros com criminosos em motos e encontraram as vias para o porto bloqueadas. “O que mais me surpreendeu ao chegar aqui foi a ousadia dos ataques em plena luz do dia. Como é que uma coisa dessas pode ser cometida?”, comentou Godfrey Otunge, comandante queniano da força.
As autoridades locais confirmam que, desde a chegada dos primeiros policiais estrangeiros, em junho, houve grandes progressos em alguns bairros no sentido de uma lenta retomada da rotina. O aeroporto da capital foi reaberto, depois da expulsão das gangues da área à sua volta, e o mesmo se deu com o principal hospital público. Muitos comerciantes estão voltando ao trabalho.
Acontece que os quenianos estão em enorme desvantagem numérica, e os grupos criminosos, fortemente armados, permanecem estabelecidos com firmeza em diversas regiões da cidade – que continuam praticamente isoladas, incluindo o centro e a área à volta da Embaixada dos EUA. Não estão mais no hospital, é verdade, mas ele se encontra praticamente destruído, e por isso não pôde ser reaberto ainda.
As gangues também expandiram seu controle fora da capital, ocupando três importantes rodovias que ligam Porto Príncipe a outras regiões e cercando cidades menores e vilarejos aos quais as forças internacionais não têm recursos para chegar. Na semana passada, por exemplo, um grupo atacou uma cidadezinha do Vale Artibonite, na porção central do país, deixando 88 mortos, incluindo dez bandidos.
Mais de 700 mil pessoas que tiveram de fugir de casa durante a onda de violência do último ano e meio ainda não conseguiram retornar. Metade da população nacional – cerca de 5,4 milhões – tem dificuldade para comer todo dia, e pelo menos seis mil indivíduos estão vivendo em acampamentos miseráveis, assombrados pela fome o tempo todo, segundo a análise divulgada recentemente por um grupo internacional de especialistas.
O Haiti vem sendo castigado por níveis assombrosos de violência há mais de três anos, desde que o último presidente eleito, Jovenel Moïse, foi assassinado. Muita gente que foi forçada a fugir passou a morar em escolas e prédios públicos. Segundo a ONU, quase 3.700 pessoas foram mortas só em 2024.
Segundo o que disse o primeiro-ministro Garry Conille em uma reunião em Nova York, em setembro, as estradas bloqueadas ao redor de Porto Príncipe tornam “praticamente impossível” que a polícia intervenha a tempo quando as gangues cometem investidas em locais fora da área metropolitana. Acontece que a força-tarefa liderada pelos quenianos é pequena demais: o número original incluía 2.500 homens, mas há pouco mais de 400. Por outro lado, os especialistas calculam que há mais de 200 gangues, compostas, no total, por 15 mil.
A missão de US$ 600 milhões foi sancionada pelas Nações Unidas, mas principalmente financiada e organizada pelos EUA. Depende de contribuições voluntárias, e até agora recebeu US$ 369 milhões dos norte-americanos e US$ 85 milhões de outras nações. Há pouco tempo, o governo Biden anunciou outra quantia assistencial – US$ 160 milhões – para a Polícia Haitiana Nacional.
O ministro das Relações Exteriores do Quênia, Musalia W. Mudavadi, afirmou na reunião do mês passado em Nova York, que há limites para o que 400 oficiais conseguem fazer, deixando claro que “atualmente faltam” recursos à iniciativa.
O governo Biden está tentando transformar o destacamento em missão oficial de força de paz da ONU, o que exige dos Estados-membros contribuição em verba e pessoal. O presidente queniano, William Ruto, pretende enviar mais 300 oficiais ainda este mês e outros 300 até o fim de novembro. A Jamaica e Belize também contribuíram com um pequeno contingente. “Com esses reforços, poderemos estabelecer 12 bases operacionais destacadas na Grande Porto Príncipe e no Vale Artibonite, de modo que a área retomada das gangues possa ser mantida”, explicou Otunge.
E prosseguiu: “Em fins de julho, quando respondemos ao ataque de uma gangue em Ganthier, a cerca de 32 quilômetros da capital, a operação durou uma semana devido à falta de apoio aéreo; os homens tiveram de dormir nos veículos. Não tínhamos o que comer; os policiais haitianos tiveram de repartir a comida conosco. Apesar disso, tenho orgulho em dizer que pusemos os bandidos para correr.”
Para os especialistas, a transformação da força queniana em missão de manutenção da paz talvez seja a única saída para libertar o Haiti das gangues, permitindo a definição de uma data para promover eleições presidenciais.
Segundo um membro do governo Biden – que não pôde ser identificado durante uma coletiva por estar discutindo questões diplomáticas –, essa seria a solução mais eficaz para garantir que a missão internacional dure o tempo que for necessário. “Temos a chance de reconstruir sobre essa base de segurança, de progresso, de senso renovado de esperança”, declarou o secretário de Estado Antony Blinken durante o encontro de setembro com autoridades haitianas e quenianas.
As operações de paz da ONU têm um histórico longo e complicado no Haiti, com acusações de abuso sexual e falta de higiene, a ponto de levar a cólera de volta ao país e causar milhares de mortes.
Mas, apesar dos problemas anteriores, o presidente do conselho presidencial de transição do Haiti, responsável pelo estabelecimento do pleito, pediu à ONU que volte ao país. “Tenho certeza de que essa mudança de status, mesmo reconhecendo que os erros do passado não podem ser repetidos, garantirá o sucesso total da missão”, afirmou o presidente interino, Edgard Leblanc Fils, na Assembleia Geral da ONU, em setembro.
Carlos Hercule, ministro haitiano da Justiça, admitiu estar “impaciente”. “Muitos policiais haitianos estão deixando o país. Precisamos de um destacamento reforçado o mais breve possível.” Já Otunge, ex-diretor de operações de segurança da Polícia Queniana que participou de missões de paz no Sudão do Sul e na Somália, pediu paciência. “Não vou descansar enquanto o Haiti não recuperar sua glória. Não posso decepcionar o povo haitiano. Nunca fracassei e não estou preparado para fazer isso justo aqui.”
c. 2024 The New York Times Company