O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, dissolveu a câmara baixa do parlamento no final de 2024 e convocou eleições antecipadas para este domingo (23). A dissolução foi mais um dos sinais de colapso do governo de Olaf Scholz, primeiro-ministro alemão eleito em 2021 e substituto de Angela Merkel. A primeira sinalização clara de crise na gestão de Scholz ocorreu após a demissão do ministro das Finanças, Christian Lindner, em novembro. Ressentidos pela decisão, os correligionários de Scholz, os Democratas Livres (FDP), deixaram o governo, fazendo com que o chanceler perdesse a maioria no Parlamento e mergulhasse a Alemanha em uma crise política. Quando anunciou a dissolução dos 736 assentos do Bundestag, Steinmeier disse estar “convicto de que novas eleições são o caminho certo para o bem da Alemanha”. O presidente também justificou a dissolução do Parlamento, uma medida excepcional, ao afirmar que “especialmente em tempos difíceis, como agora, é necessário um governo estável e capaz de agir com maiorias confiáveis no Parlamento.” Para Uriã Fancelli, mestre em Relações Internacionais pelas universidades de Estrasburgo e Groningen, os “tempos difíceis” mencionados pelo presidente alemão não são um exagero. “O país enfrenta uma combinação perigosa de desafios internos e externos que colocam sua estabilidade em xeque. Internamente, as brigas dentro da coalizão entre o SPD de Olaf Scholz, os Verdes e o FDP transformaram o governo em um campo de batalha. Questões importantíssimas, como o combate às mudanças climáticas e a reforma do sistema previdenciário, foram atropeladas por divergências sobre o déficit orçamentário, que acabou por implodir a coalizão”, diz Fancelli. Para remediar a crise e colocar à prova seu governo, Scholz moveu no dia 11 de dezembro uma moção de confiança no parlamento alemão. De acordo com o artigo 68 da constituição alemã, o chanceler pode apresentar uma moção ao Bundestag, para que os parlamentares digam se o chanceler tem ou não a confiança deles. O país não votava uma moção de confiança desde 2005, quando o então chanceler Gerhard Schröder convocou e perdeu o voto. A moção acabou sendo uma derrota para Scholz e seus aliados. Com um placar de 394 contrários, 207 favoráveis e 116 abstenções, o chanceler precisava de uma maioria absoluta de 367 votos para sair vitorioso. Após perder o voto de confiança, Scholz propôs ao presidente da Alemanha a dissolução do parlamento. Historicamente, a dissolução é um dos últimos recursos para crises políticas, mas na prática, costuma ser pouco mais que uma medida paliativa, segundo Fancelli. Para o especialista, o recurso expõe mais sobre as fraquezas da liderança em questão do que sobre uma verdadeira capacidade de resolver problemas. “A dissolução do Bundestag parece mais uma tentativa de ganhar tempo do que de enfrentar as reais causas da crise: um orçamento estourado, divergências ideológicas irreconciliáveis e o crescimento de forças populistas como o AfD (Alternativa para a Alemanha) e o BSW (Aliança Sahra Wagenknecht). Essa solução, que em teoria deveria estabilizar, poderia amplificar a desordem, deixando claro que a preocupação pode não ser a resolução da crise. A verdadeira saída para a crise dependerá, portanto, da capacidade da nova liderança – provavelmente Friedrich Merz – em articular alianças, formar um governo sólido e ceder quando necessário. Sem isso, a dissolução será apenas mais um capítulo em um ciclo de instabilidade e polarização crescente”, avalia Fancelli. O mais cotado para assumir a chancelaria federal é o líder do partido de centro-direita União Democrata Cristã (CDU) e do grupo parlamentar conservador que inclui a União Social Cristã (CSU), Friedrich Merz. O postulante, segundo jornais alemães, é um representante neoliberal da ala conservadora da CDU. Em 2008, ele escreveu um livro intitulado “Mehr Kapitalismus wagen” (Ouse Mais Capitalismo) defendendo uma política econômica liberal, cortando a burocracia, reduzindo benefícios sociais e enxugando impostos para empresas. Na visão de Guilherme Frizzera, coordenador de Relações Internacionais da Uninter, caso Merz alcance o posto de chanceler, sua atuação deverá ser pautada por quatro eixos principais: política social e econômica doméstica, relação com a direita no Parlamento, agenda da União Europeia e gestão das relações com Donald Trump, presidente dos EUA. “No âmbito social e econômico, Merz enfrentará o desafio de equilibrar crescimento e estabilidade fiscal. Sua agenda deve incluir incentivos ao setor produtivo, redução da burocracia e modernização da infraestrutura, sem comprometer a política de austeridade defendida pela CDU”, afirma Frizzera. A questão migratória será outro ponto central para uma possível gestão de Merz, especialmente no que diz respeito à integração de imigrantes no mercado de trabalho e ao controle das fronteiras. Estes temas, na visão do especialista, têm impacto direto no debate político interno e na relação da Alemanha com a União Europeia. “Merz também deverá articular uma resposta europeia coordenada, reforçando a cooperação em defesa e explorando alternativas para reduzir a dependência da política externa americana. Ao mesmo tempo, sua postura será determinante para garantir que a Alemanha mantenha sua posição como um dos principais aliados dos EUA na Otan, evitando desgastes que possam comprometer a segurança do continente”, diz. Somada à crise política, a economia alemã também coleciona tropeços nos últimos anos. No auge da hiperglobalização, em 2011, a Alemanha chegou a ser a nação que mais exportava em valor agregado. O gás russo fornecia combustível barato às suas indústrias, e a China era um grande parceiro comercial. Mas alguns desdobramentos históricos como o Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), as tarifas de Donald Trump, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a ascensão da China, que passou de compradora a concorrente, afetaram substancialmente o modelo industrial alemão. Embora a dissolução do Bundestag tenha raízes políticas, os efeitos podem amplificar a recessão econômica em curso, avalia Uriã Fancelli. “Incertezas podem intensificar e aprofundar crises econômicas em qualquer país. A Alemanha, maior economia da Europa, já enfrenta uma grave crise industrial, impulsionada pela transição energética, altos custos de produção e a crescente competição de países como os Estados Unidos e a China. Essa instabilidade política paralisa decisões importantes relacionadas ao orçamento de 2025, investimentos em infraestrutura e políticas industriais necessárias para mitigar o declínio econômico”, afirma. Além disso, o retorno de Donald Trump à Casa Branca adiciona mais pressão à economia europeia, considerando as possíveis mudanças nas relações transatlânticas, a ameaça de uma retração no apoio à Ucrânia e o impacto potencial de tarifas que poderiam chegar a 20%. “Sem um governo funcional e estável, a Alemanha fica menos preparada para responder a esses desafios externos e retomar seu papel de liderança econômica e política na Europa”, completa. Antes da demissão do ministro das Finanças, Christian Lindner, que concretizou a crise alemã, Olaf Scholz já apresentava baixos índices de popularidade e aprovação. O estilo apelidado de "Scholzomat“, que priorizava discursos secos e o mínimo de interação emocional, funcionou quando o chanceler era ministro das Finanças, mas deixou a desejar no comando de uma coalizão cheia de divergências.Uriã Fancelli avalia que Olaf Scholz conseguiu se tornar um dos chanceleres mais impopulares da Alemanha principalmente porque “insistiu em liderar com a frieza de um tecnocrata, como se comunicar com as pessoas fosse um detalhe irrelevante”. “Em vez de aproveitar a oportunidade para se conectar com os eleitores durante crises como a guerra na Ucrânia, a inflação e a crise energética — momentos que poderiam ter favorecido políticos tradicionais, considerando que a população tendia a preferir estabilidade —, Scholz permaneceu preso à sua abordagem tecnocrática, deixando a sensação de que estava distante dos problemas reais do país. Enquanto a direita avançava e a oposição se fortalecia, ele parecia mais preocupado em manter sua postura rígida do que em ajustar sua liderança às demandas do momento. O resultado foi um governo que, apesar de algumas conquistas, será lembrado mais por suas falhas em unir o país e inspirar confiança”, diz Fancelli.