Qual a relação do genocídio em Ruanda com Bélgica, França e EUA?
Países são acusados de corroborar e de se omitirem diante dos conflitos entre Tutsis e Hutus que mataram 800 mil em 1994
Internacional|João Melo, Do R7*
Em 1994, um genocídio em Ruanda, país localizado na África Orienteal, causou a morte de mais de 800 mil pessoas entre abril e junho daquele ano. E, o que aparentemente foi um conflito impulsionado apenas pelas etnias ruandesas Tutsis e Hutus, teve desdobramentos mais profundos acerca da influência de outros países.
A atuação da comunidade internacional no massacre em massa de Ruanda teve início no Tratado de Versalhes (1919), quando ficou definido que a Bélgica ficaria com grande parte do território ruandês na divisão do continente africano feita entre países europeus.
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Naquele momento, o governo belga usou de uma estratégia de poder que classificava os Tutsis, que eram 14% da população local, como superiores racialmente em relação aos Hutus. Para chegar a essa conclusão foi usado como critério quem tinha os traços da fisionomia mais parecidos com os de um europeu, ou seja, de um branco.
“A principal responsabilidade da Bélgica está no passado colonialista da região, porque a divisão territorial foi acompanhada por uma divisão social. Então, o governo belga percebeu que uma forma de manter o controle da população ruandesa era incentivar a divisão étnica da população e apoiar determinados grupos conforme seu interesse” destacou Gustavo Macedo, pesquisador da USP e professor de Relações Internacionais da FMU.
Com isso, Tutsis passaram a ter empregos com melhor qualificação do que os Hutus e regenerando-os a trabalhos com salários mais baixos, estimulando uma estratificação da população ruandesa.
Em 1962, Ruanda declarou independência em relação à Bélgica e a partir de então os Hutus assumiram o poder no país. Dez ano depois, Juvenal Habyarimana deu um golpe de Estado e assumiu a presidencia do país.
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As tensões entre as duas etnias foram aumentando ao longo dos anos com o passar dos anos. Em 1991, Juvenal e seus apoiadores iniciaram uma campanha de ódio para incentivar o extermínio de Tutsis no país com a criação de milícias que atuavam nas ruas de Ruanda, conhecidas como Interahamwe.
Até que, em abril de 1994, o avião que transportava o presidente ruandês e alguns aliados políticos foi abatido por mísseis, o que causou a morte do líder Hutu. Os Tutsis foram automaticamente culpados pelo incidente e a partir disso todo o discurso de ódio propagado pelas campanhas de Juvenal foram ainda mais inflamados pelo país, o que deu origem ao genocídio.
Influência e omissão da França
Ao longo dos seus mais de 20 anos de mandato, Juvenal Habyarimana recebeu o apoio não só da Bélgica, como também da França, quando foi presidida por François Mitterrand, de 1981 até 1995.
Essa proximidade entre o governo francês e o governo Hutu ruandês fez com que, naquele momento, o país europeu não tomasse uma atitude para tentar conter os conflitos entre as duas etnias e evitar a morte de centenas de milhares de Tutsis.
“A França tem uma grande responsabilidade porque poderia ter exercido sua força sobre o governo hutu para impedir o avanço do genocídio, fazendo ameaças e algum tipo de pressão para frear os massacres. Além disso, eles também poderiam ter usado a sua forte influência dentro do Conselho de Segurança da ONU para intervir nos conflitos”, destaca o pesquisador.
Por ser um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, a França tem voz entro do órgão e também o poder de vetar qualquer decisão que os outros países tomem em relação a uma ação a ser tomada pela entidade.
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Contudo, como havia uma certa divisão entre o presidente francês e o seu primeiro-ministro na época, Édouard Balladur, esse embate fez com que houvesse um entrave para que o país tomasse alguma medida mais efetiva em relação ao que estava acontecendo no país africano. Logo, foi decidido que não seria interessante do ponto de vista diplomático uma intervenção francesa no conflito.
A responsabilidade do governo francês no genocídio foi apontada por dois relatórios divulgados recentemente, um pela própria França, conhecido como Relatório de Duclert, e outro por Ruanda. Nos dois documentos é confirmada a influência dos europeus nos 3 meses de conflitos entre Tutsis e Hutus, tanto pelo seu apoio a Juvenal Habyarimana como pela omissão diante de um evento previsível.
“Há agora um movimento, com esses relatórios, de passar a limpo a história, de reconhecer o papel que a França teve no genocídio de 1994. O principal objetivo é para que haja uma revisão da culpabilidade dos agentes causadores do massacre e até mesmo uma tentativa de reconhecimento público e ressarcimento à comunidade ruandesa”, destacou o professor de Relações Internacionais.
O papel dos Estados Unidos
Há também um consenso internacional de que os Estados Unidos poderiam ter ajudado a combater o genocído em Ruanda, principalmente por conta da sua influência, assim como a da França, dentro do Conselho de Segurança da ONU.
De acordo com Gustavo Macedo, os norte-americanos receberam relatórios informando que estavam ocorrendo atos de genocídio no conflito entre Tutsis e Hutus, mas como essas informações chegavam sem tantos detalhes, o governo do então presidente Bill Clinton julgou não ser interessante descolcar tropas do país para este conflito.
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O pesquisador da USP afirma também que um recente fracasso de tropas norte-americanas em uma missão realizada na Somália fez com que a opinião pública dos EUA não aceitasse que militares do país se envolvessem em mais um conflito internacional logo em seguida.
“O fato de os Estados Unidos terem perdido soldados nos conflitos da Somália, em uma guerra que não era dos norte-americanos, fez com que o país ficasse um pouco traumatizado e isso certamente influenciou a decisão do governo em ter muita cautela para agir em Ruanda”, destacou.
As lições deixadas pelo genocídio
O professor da FMU ressalta que os eventos que aconteceram em Ruanda impulsionaram a criação de mecanismos para que a comunidade internacional pudesse agir de maneira mais rápida e efetiva em conflitos como aquele. A criação do Estatuto de Roma e do Tribunal Penal Internacional foram duas das medidas adotadas para fortalecer a atuação neste tipo de ocasião.
“A normativa internacional aprendeu muito com o fracasso na intervenção em Ruanda. Ele mostrou à comunidade internacional que não dá para ficar esperando a confirmação de que aquilo é, ou não, um genocídio. Esse episódio e tudo o que ele representou fez com que os países refletissem sobre a ideia de genocídio e o que fazer diante de situações parecidas”, afirmou Gustavo Macedo.
*Estagiário do R7 sob supervisão de Pablo Marques