Qual era a responsabilidade de Elizabeth 2ª nas colônias britânicas?
Morte de rainha levou às redes sociais discussões sobre o passado imperialista da Inglaterra, tanto na África como nas ilhas do Caribe
Internacional|Lucas Ferreira, do R7
No último dia 8, a rainha Elizabeth 2ª morreu, e deixou o trono do Reino Unido para o filho herdeiro, Charles 3º. O falecimento da monarca, que ficou durante 70 anos no comando do trono britânico, causou comoção ao redor do mundo.
O evento, que parou o Reino Unido e tomou conta dos noticiários globais, também trouxe indignação a muitos internautas, que relembraram o passado colonizador e exploratório da monarquia britânica. Porém, qual foi a responsabilidade de Elizabeth 2ª nesse imperialismo?
O professor de relações internacionais da PUC-Campinas Gustavo Glodes Blum explica que a rainha, que assumiu o trono em 1952, já vivia em um Reino Unido parlamentarista, na época comandado pelo primeiro-ministro Winston Churchill. Sendo assim, as decisões políticas, como a invasão ou exploração de um país, não cabiam mais à monarca.
“Durante seu reinado, Elizabeth 2ª cumpriu com sua posição de chefe de Estado dentro do sistema político do Reino Unido e das colônias que este país administrava. Dentro da lógica da monarquia parlamentar britânica, as políticas de governo são discutidas e executadas pelo Parlamento”, conta Blum em entrevista ao R7.
Porém, se Elizabeth 2ª não possuía a palavra final e era a executora das ações, isso não significa que ela não possa ter aconselhado e conversado com os primeiros-ministros do Reino Unido durante todos esses anos.
“É possível afirmar que a rainha, ao reunir-se semanalmente com os sucessivos chefes de Governo, tinha conhecimento das práticas adotadas, e poderia aconselhá-los a favor ou contra elas, mas sem capacidade de decidir sobre.”
Também em entrevista ao R7, o professor de relações internacionais da UFT (Universidade Federal do Tocantins) Carlos Frederico Pereira da Silva Gama conta que o auge do imperialismo britânico aconteceu entre os séculos 18 e 20, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.
“Quando nós pensamos em colonização, imperialismo e Reino Unido, estamos falando do império britânico. Esse império chegou a ser o mais extenso da história, e atravessou cinco continentes”, ressalta Gama.
Ainda que fora do auge na época de Elizabeth 2ª, o professor da UFT enfatiza que o Reino Unido chegou a experimentar certo imperialismo nas décadas de 1950 e 1980 no Egito e na Argentina, respectivamente.
“Em 1956, quando o Egito de Gamal Abdel Nasse nacionalizou o canal de Suez, o Reino Unido invadiu o Egito com o apoio de Israel e França, e o mundo estava à beira de uma guerra mundial. Já em 1982, respondendo a provocações da ditadura militar da Argentina, o Reino Unido retomou militarmente as Ilhas Malvinas.”
A queda da hegemonia britânica após as guerras
A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais mudaram o destino do mundo. Os dois grandes conflitos em um período menor do que 30 anos alteraram os países que hoje são vistos como grandes potências.
Antes da Primeira Guerra, o Reino Unido possuía uma influência única no restante do mundo. Entretanto, após o fim da Segunda Guerra, viu os Estados Unidos e a União Soviética travarem a disputa para manter as rédeas e o controle das relações internacionais.
“A rainha chegou ao poder quando o império estava acabando, após a Segunda Guerra Mundial. Mesmo vencendo as duas guerras, o custo das vitórias foi enorme. Milhões de mortos, devastação econômica sem precedentes”, conta Gama. “Elizabeth 2ª foi a soberana dessa decadência imperial.”
A rainha viu o Reino Unido perder as duas maiores colônias do país, Índia e Paquistão, em 1947, poucos anos antes de assumir o trono. Após a independência dessas nações, o trabalho de Elizabeth 2ª para manter as boas relações com os territórios que ainda a tinham como chefe de Estado se intensificou.
“Podemos afirmar que Elizabeth 2ª tinha uma responsabilidade grande de dar um verniz agradável a políticas problemáticas, como a manutenção de governos de minorias brancas sobre populações etnicamente diversas e sem a introdução de regimes democráticos”, explica Blum.
O especialista da PUC-Campinas também destaca a prerrogativa real, que permite ao monarca interferir em áreas de políticas que são de jurisdição do Parlamento. Elizabeth 2ª, nesse caso, poderia opinar sobre questões de segurança nacional e ações no setor das relações internacionais do Reino Unido.
“Nesse padrão de comportamento, podemos afirmar que o monarca tem um peso constitucional importante na tomada de decisões relativas a isso, mas pouca liberdade de ação, uma vez que essa ação deve ser tomada pelo Parlamento e pelo Gabinete.”
Gama acredita que Elizabeth 2ª fugiu das questões mais “espinhosas” da descolonização britânica na Ásia. A monarca, inclusive, teria ajudado na mediação dos processos seguintes de independência.
“A rainha tentou promover uma descolonização negociada com movimentos independentistas, seguindo o modelo proposto pela Liga das Nações e adotado pela ONU.”
Commonwealth
Atualmente, 14 países, além do Reino Unido, terão Charles 3º como chefe de Estado. Em grande parte, essas nações estão presentes no Caribe e na Oceania, com destaque para Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Esse grupo é conhecido como Reinos da Commonwealth.
Ainda existe outro bloco muito maior, chamado só de Commonwealth, no qual é formado, na maioria, pelas ex-colônias do Reino Unido.
“A Commonwealth foi uma tentativa de manter as colônias próximas da metrópole através de cooperação técnica e econômica e intercâmbio cultural”, diz Gama.
Dentro desse amplo grupo, existem os membros ricos (Austrália, Canadá e Nova Zelândia), que estabeleceram forte vínculo econômico e cultural com o Reino Unido, mas sem dependência política com a família real. Essa máxima, porém, não cabe às nações mais pobres.
“Colônias no Caribe, na Ásia e na África mantêm outro tipo de relação com a família real. Existem dependência econômica e instabilidade política, o que favorece a atuação entre Londres e as novas capitais descolonizadas”, afirma o professor da UFT.
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Hoje, a chefia da Commonwealth é de Charles 3º, o que foi acordado em 2018 e abalou as relações do grupo com a rainha Elizabeth 2ª, que fez questão de garantir o cargo ao filho quando assumisse o trono.
“A reunião que se realizou entre os países membros da comunidade em 2018 foi uma das mais tensas até então, e pode ser considerada uma das fontes das decisões de acelerar processos de independência, uma vez que se esperava que os líderes da Commonwealth a partir de Elizabeth 2ª fossem nacionais dos países que a compõem, e não o herdeiro britânico”, explica Blum.
Em 2021, poucos anos após esse encontro, Bermudas anunciou a implementação de uma presidente como chefe de Estado, em uma cerimônia com a presença do então príncipe de Gales, Charles. Desde então, outros países já mostraram que também desejam se tornar repúblicas, como Austrália, Jamaica e Nova Zelândia.
“Cabe lembrar que há países que, mesmo não tendo sido colônias britânicas, têm interesse em fazer parte da Commonwealth”, ressalta Blum. “Ruanda, Togo e Gabão nunca foram colônias britânicas, mas foram aceitos na comunidade em 2009, no caso de Ruanda, e em 2022, no caso de Togo e Gabão, o que pode alterar a composição e a forma de funcionamento desse grupo de países no futuro.”
“A importância financeira do Reino Unido para as ex-colônias vem diminuindo à medida que poderes emergentes, como a Índia e a China, se tornam economias maiores e mais dinâmicas, além de geograficamente mais próximas”, conclui Gama.
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