Imagens que salvam: IA e ultrassom 3D revolucionam medicina fetal e são decisivas para gêmeos siameses
A ultrassonografia tridimensional no primeiro trimestre da gestação, analisadas rapidamente por algoritmos de IA, é fundamental para...
The Conversation|Do R7

A medicina fetal vive uma revolução silenciosa, mas visível nas telas de alta resolução. Antes eram borrões em preto e branco. Hoje, são mapas detalhados que definem o futuro de famílias graças à tecnologia de imagens 3D, às realidades virtual e aumentada e ao metaverso. Esta tecnologia está transformando o diagnóstico de más-formações e doenças congênitas durante o pré-natal.
O caso dos siameses
Um estudo que publicamos no periódico Ultrasound in Obstetrics & Gynecology no início deste ano destacou a importância da ultrassonografia tridimensional (3D) no primeiro trimestre da gestação para o diagnóstico e aconselhamento parental de gêmeos craniópagos, ou seja, unidos pela cabeça. Essa condição é extremamente rara, ocorrendo em cerca de 1 a cada 2,5 milhões de nascimentos, e ilustra como a tecnologia pode ser decisiva.
O caso foi acompanhado por mim em parceria com uma equipe multidisciplinar do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, no Rio de Janeiro. Tudo começou com o diagnóstico em uma jovem de 21 anos com 13 semanas de gestação de gêmeos unidos pelo crânio.
Inicialmente, o ultrassom 2D (bidimensional) comum, apesar de mostrar a fusão craniana, deixava uma incerteza sobre a separação dos cérebros em virtude da dificuldade de visualização causada pelo movimento fetal e a limitada manobrabilidade da sonda.
Para nós, um dos maiores desafios foi determinar a máxima precisão anatômica para que a equipe médica e os pais pudessem tomar decisões informadas sobre os bebês. Era necessário identificar se eles compartilhavam tecido cerebral. Esta condição influenciava diretamente no prognóstico e na possibilidade de separação cirúrgica.
Foi então que a tecnologia 3D fez a diferença. Utilizando imagens volumétricas adquiridas por meio de ultrassom transvaginal e reanalisadas com software especializado, foi possível identificar e delinear dois cérebros separados, claramente divididos pela dura-máter, a membrana que envolve o órgão.
As reconstruções volumétricas 3D ofereceram uma visualização muito mais clara dos fetos e suas relações anatômicas. Essa informação, obtida tão precocemente, foi vital. Ela permitiu à equipe neurocirúrgica avaliar a viabilidade da separação cerebral e influenciou positivamente o aconselhamento dos pais.
Nova fronteira para o planejamento cirúrgico
A precisão fornecida pela ultrassonografia 3D é apenas o ponto de partida para a revolução que a Inteligência Artificial (IA), as realidades virtual e aumentada e a impressão 3D estão promovendo na medicina fetal. Essas tecnologias criam um ambiente de planejamento cirúrgico mais seguro e previsível.
Os algoritmos de IA são treinados para analisar rapidamente exames de imagem como ultrassom e Ressonância Magnética (RM) e segmentá-los, ou seja, identificar e isolar automaticamente as estruturas de interesse.
Com esses dados sobre o cérebro, o crânio e os vasos sanguíneos separados, uma equipe de designers do Biodesing Lab – laboratório de inovação e saúde da PUC-Rio/Dasa – utilizou a IA para reconstruir modelos 3D detalhados da anatomia. Assim, conseguimos mapear conexões complexas e compartilhadas. No caso dos gêmeos craniópagos, esse passo foi essencial para entender as relações cerebrais e vasculares deles.
Com os modelos 3D digitais prontos, eles foram inseridos em um ambiente de metaverso e acessados por meio de óculos de realidade virtual (RV). Isso possibilitou à equipe de cirurgia realizar ensaios virtuais da operação. Os cirurgiões puderam, então, navegar pelas estruturas, planejar os pontos de corte, prever complicações, testar diferentes abordagens. A equipe foi treinada em um ambiente seguro e controlado.
Mas além do virtual, a impressão 3D também contribuiu com detalhamento do caso com base na produção de modelos físicos e exatos dos gêmeos. Tocar nas réplicas permitiu que a equipe adquirisse uma compreensão tátil da profundidade e das relações espaciais, o que complementou a visualização digital e facilitou a tomada de decisões cirúrgicas mais precisas.
A IA como “copiloto” na obstetrícia
A aplicação dessa tecnologia não se restringe a situações raras. A inteligência artificial está remodelando o dia a dia do pré-natal e um dos grandes avanços está no monitoramento do crescimento fetal.
Nós publicamos recentemente um outro estudo no Journal of Clinical Ultrasound que discute como a IA auxilia o manejo da restrição de crescimento fetal. Nós utilizamos algoritmos para automatizar medições biométricas com precisão superior à manual e analisar curvas de crescimento e fluxos sanguíneos para prever riscos com antecedência. Isso permite intervenções mais rápidas e personalizadas, garantindo que o bebê nasça no momento mais seguro.
Corações virtuais
O coração fetal, por ser um órgão pequeno e em constante movimento, sempre foi um desafio para o ultrassom convencional, mas a tecnologia 3D e a Realidade Virtual estão mudando isso para o diagnóstico de cardiopatias congênitas.
Em outro estudo do nosso grupo, também publicado em periódico internacional recentemente, mostramos como a segmentação do coração fetal em ambiente de Realidade Virtual facilita o entendimento de anomalias complexas.
Ao transformar o exame em um modelo imersivo, discutimos como médicos podem “navegar” por dentro das câmaras cardíacas do feto. E isso passa a ser uma grande ferramenta para planejar cirurgias cardíacas logo após o nascimento.
Neste ano, assinamos ainda um estudo que reforça o valor desses modelos virtuais e físicos para a avaliação das cardiopatias congênitas. E a precisão se estende a diagnósticos mais raros e sutis.
Um exemplo é a detecção pré-natal da vesícula biliar em gorro frígio, uma dobra anatômica específica. O estudo recente demonstra como o ultrassom 3D e a Ressonância Magnética permitem identificar essa variação ainda no útero. Embora benigna, seu reconhecimento correto evita confusões com outras patologias mais graves, tranquilizando a família e a equipe médica.
O futuro com Realidade Estendida e a medicina 4.0
Estamos caminhando para a era da Realidade Estendida (XR) na radiologia e refletimos sobre este tema em um artigo que publicamos também neste ano na revista La Radiologia Medica. Mostramos que a fusão das Realidades Virtual, aumentada e mista, está criando mecanismos de ensino e diagnóstico. Não se trata apenas de ver melhor, mas de interagir com a imagem.
O estudo explora como essas tecnologias estão sendo cada vez mais aplicadas, sobretudo no aprimoramento do diagnóstico, no auxílio à navegação durante procedimentos intervencionistas, no cuidado direto com o paciente e no treinamento e na simulação para radiologistas.
Este estudo de revisão enfatiza o potencial significativo da XR para melhorar o cuidado clínico e a necessidade urgente de mais pesquisa e desenvolvimento para explorar completamente suas capacidades no futuro da saúde.
A chamada medicina 4.0 integra essas tecnologias digitais para empoderar a decisão clínica. O foco deixa de ser apenas a cura da doença e passa a ser a predição e a personalização do cuidado.
Seja na separação complexa de gêmeos, seja na medição rotineira do abdômen fetal. A tecnologia está lá. Ela atua como uma extensão da sabedoria médica, corroborando a precisão, a previsibilidade e a ciência brasileira para que se desenvolva com um futuro de cuidado ainda mais efetivo.
Heron Werner não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.
