Logo R7.com
RecordPlus
JR 24H

Nutrição, microbioma e epigenética: como as nossas escolhas moldam nossas saúde ao longo da vida

Como numa orquestra onde os genes são os instrumentos e a epigenética é o maestro, as condições externas também influenciam a performance...

The Conversation

The Conversation|Do R7

  • Google News

Por muito tempo acreditamos que a saúde era determinada basicamente pelos genes herdados dos pais. Como se nossa biologia fosse um roteiro fixo, imutável, e o melhor que poderíamos fazer era torcer para que a genética estivesse a nosso favor. Hoje sabemos que isso não é verdade.

A ciência da epigenética mostrou que os genes não são o nosso destino, e sim o nosso ponto de partida. O que realmente define o caminho é a conversa constante entre o DNA e aquilo que vivemos: alimentação, emoções, ambiente, vínculos sociais, atividade física e até o estresse do dia a dia.


É como se nosso organismo fosse uma grande orquestra. Os genes são os instrumentos. Mas quem decide quais deles vão tocar mais alto, quais ficam silenciosos e quais entram no momento certo é a epigenética — um maestro sensível às condições ao redor.

Entre os fatores que mais influenciam esse maestro, dois se destacam: a nutrição e o microbioma intestinal. Juntos, eles formam um eixo poderoso que molda não apenas a nossa saúde hoje, mas também ao longo de toda a vida.


Tudo começa bem antes de nascermos

A epigenética trouxe uma das descobertas mais fascinantes das últimas décadas: as condições às quais somos expostos ainda dentro do útero podem influenciar nossa saúde para sempre. Essa ideia ficou conhecida pela sigla DOHaD (Developmental Origins of Health and Disease) — as “Origens Desenvolvimentistas da Saúde e da Doença”.


Um dos estudos mais marcantes dessa área veio de um evento trágico: a Fome Holandesa, no inverno de 1944–45, quando milhares de gestantes foram submetidas a privação alimentar extrema. Décadas depois, pesquisadores descobriram que os filhos dessas mulheres tinham maior risco de diabetes, hipertensão, obesidade e doenças cardiovasculares. E o mais impressionante: essas pessoas apresentavam marcas epigenéticas diferentes, especialmente em genes ligados ao crescimento e ao metabolismo.

Ou seja: o ambiente nutricional da gestação deixou “assinaturas químicas” no DNA dessas crianças, que permaneceram ali por toda a vida.


Essas marcas não mudaram a sequência do DNA — mudaram a forma como o DNA seria interpretado.

Como a comida conversa com os nossos genes

Nos bastidores da epigenética, vários mecanismos regulam a atividade dos genes. Entre eles, a metilação do DNA é um dos mais estudados. Para que essa marca seja feita, o corpo precisa de nutrientes específicos, como folato, colina, vitaminas do complexo B e metionina. Todos eles fazem parte de um circuito bioquímico chamado ciclo do carbono, que funciona como uma fábrica de pequenos grupos químicos usados para “ligar” ou “desligar” genes.

Se esses nutrientes estão presentes em boas quantidades, a orquestra epigenética funciona de forma afinada. Se estão em falta, o maestro pode perder parte do controle.

Um dos experimentos mais famosos da epigenética ajuda a entender como a alimentação da mãe pode influenciar a saúde dos filhos — mesmo sem mudar o DNA. É o estudo do gene agouti, conduzido pelos pesquisadores Randy Jirtle e Robert Waterland, na Universidade de Duke.

Eles trabalharam com camundongos que tinham exatamente o mesmo DNA, inclusive o gene agouti, que deixa os animais amarelos, obesos e mais propensos a doenças. A diferença veio da alimentação das mães durante a gestação.

As fêmeas que receberam uma dieta rica em doadores de metil, como o ácido fólico, vitamina B12, colina e betaina, tiveram filhotes completamente diferentes. Eles nasceram com pelagem marrom, mais magros e com muito menos risco de desenvolver doenças metabólicas ao longo da vida.

Já as mães que não receberam essa suplementação, deram origem a filhotes amarelos, mais pesados e mais vulneráveis a diabetes e obesidade — mesmo que o DNA fosse idêntico ao dos irmãos mais saudáveis.

Esse exemplo ajuda a entender por que a nutrição é uma linguagem tão poderosa na comunicação entre ambiente e genética.

O microbioma: o órgão invisível que dá conselhos ao nosso DNA

Se a nutrição é uma das vozes que conversam com o epigenoma, o microbioma intestinal é outra — e talvez ainda mais surpreendente.

Trilhões de microrganismos vivem dentro do nosso intestino e funcionam como uma verdadeira usina bioquímica. Eles fermentam fibras, produzem vitaminas, regulam a imunidade e influenciam até o nosso humor. E, como a ciência tem mostrado, eles também falam diretamente com os nossos genes.

Um dos principais mensageiros são os ácidos graxos de cadeia curta, especialmente o butirato, produzido quando comemos fibras. O butirato atua como um modulador epigenético, ajudando a abrir a cromatina e permitindo que certos genes protetores sejam ativados. Isso afeta desde a integridade do intestino até a inflamação sistêmica e o metabolismo energético.

O microbioma também ajuda na produção de nutrientes essenciais para a metilação do DNA, como o acido folico. Ou seja: existe um ciclo contínuo entre aquilo que comemos, o que as bactérias produzem e a maneira como nossos genes respondem a esses sinais.

Quando a dieta é pobre em fibras e rica em ultraprocessados, esse equilíbrio se rompe. A diversidade microbiana diminui, a produção de metabólitos benéficos cai e o epigenoma recebe sinais menos favoráveis.

Infância: uma janela de extrema sensibilidade

Os primeiros anos de vida são um período em que o epigenoma é especialmente moldável. É como se a orquestra estivesse afinando seus instrumentos. Pequenas mudanças fazem grande diferença.

O leite materno desempenha um papel central nesse processo. Ele contém nutrientes e açúcares especiais que alimentam bactérias benéficas, promovem a maturação imunológica e influenciam diretamente o epigenoma do bebê. Estudos mostram que padrões de aleitamento estão associados a diferenças epigenéticas relacionadas a alergias, inflamação e até ao desenvolvimento cognitivo.

Outros fatores, como tabagismo materno, estresse na gestação ou prematuridade, também deixam marcas epigenéticas detectáveis muitos anos depois.

Ao longo da vida, a história continua sendo escrita

Tecnicamente, a epigenética nunca “desliga”. Ela continua trabalhando ao longo de toda a vida, respondendo às nossas escolhas diárias. O que comemos, como dormimos, o nível de estresse, a prática de atividade física, o grau de exposição à poluição — tudo isso continua moldando o epigenoma.

Dietas ricas em fibras, alimentos in natura e padrões alimentares como a dieta mediterrânea favorecem diversidade microbiana e enviam sinais epigenéticos positivos. Já padrões alimentares ricos em açúcar, gordura saturada e ultraprocessados aumentam a inflamação e podem modular negativamente essas marcas.

Isso ajuda a explicar por que pessoas com estilos de vida semelhantes desenvolvem doenças parecidas — mesmo sem terem necessariamente os mesmos genes.

O que isso significa, afinal?

A mensagem central é simples e poderosa:

Não somos responsáveis pelo DNA que herdamos, mas somos responsáveis pela forma como esse DNA é interpretado.

A epigenética nos lembra que sempre há espaço para mudança. Que nossas escolhas diárias, especialmente relacionadas à alimentação e ao cuidado com o microbioma, conversam com nossos genes e ajudam a definir o caminho da nossa saúde.

E embora a gestação e a infância sejam fases críticas, nunca é tarde para reprogramar: o epigenoma permanece sensível ao ambiente ao longo de toda a vida.

Esses dados fazem parte do meu livro Epigenética: A nossa herança invisível, que lancei recentemente. A ideia de escrever a obra foi esclarecer como somos muito mais do que o DNA que herdamos e como a nutrição, o microbioma e a epigenética formam um tripé fundamental para entender a saúde humana no século XXI.

Mariano Zalis já recebeu financiamento da Capes, Faperj e CNPq.

Últimas


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com oAviso de Privacidade.