Anistia: entre o esquecimento histórico e a reconstrução democrática
O dilema de um instituto que divide opiniões e atravessa gerações

Historicamente, a Lei da Anistia nº 6.683/1979, perdoou crimes políticos e conexos ocorridos entre 1961 e 1979, envolvendo policiais e militares acusados de atos de tortura, durante o regime militar. Segundo o Supremo Tribunal Federal, a decisão tomada era condizente com o momento de:
“Transição do regime militar para a democracia, resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos e conexos a eles no Brasil entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.”
Houve discussão e proposição da ADPF 153 por parte da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para que a decisão fosse anulada e, ainda, a condenação ao Brasil por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a manutenção da anistia por crimes de lesa-humanidade (dentre eles, o terrorismo).
Apesar das discussões, a Suprema Corte manteve a decisão sobre a aplicação da lei e o entendimento de que as decisões tomadas anteriormente não afetariam a Constituição Federal, em virtude de a Lei de Anistia ser do ano de 1979 e a Constituição Federal de 1988, a qual não permite anistia para crimes de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, conforme o artigo 5º, XLIII.
Conceito
Essa clemência estatal, anistia, é uma causa extintiva da punibilidade, segundo consta no artigo 107, inciso II do Código Penal, relacionada a fatos passados (não a pessoas), cuja atribuição de autorização legal pertence ao Poder Legislativo (diga-se Congresso Nacional).
Dentre as espécies, há de se destacar quanto à modalidade de crime:
- Anistia especial: relacionada a crimes políticos;
- Anistia comum: quanto aos demais ilícitos penais.
Natureza do instituto
A anistia é abordada tanto no âmbito constitucional, quanto no penal.
Anistia no direito constitucional:
Prevista no art. 5º, XLIII, da Constituição Federal, a anistia é ato de soberania do Poder Legislativo, concretizado por lei em sentido formal. Trata-se de um perdão concedido pelo Estado, que, segundo Pedro Lenza “motivado por razões políticas, renuncia ao seu direito de punir em relação a delito cometido no passado.”
Anistia no direito penal
Constitui mandado constitucional de criminalização, que, segundo André Estefam, são imposições ao legislador para “utilização do direito penal para regular o comportamento e, dessa forma, proteger satisfatoriamente o valor constitucional.”
Dos crimes contra o estado democrático de direito - Há anistia?
Importante observar essa questão sob os aspectos internacional e nacional.
Âmbito internacional
No que tange o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica -, ratificada pelo Brasil, firmou jurisprudência no sentido de que leis de anistia que impeçam a investigação e punição de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção. Foi o que se decidiu, por exemplo, no caso Gomes Lund -“Guerrilha do Araguaia” vs. Brasil (2010).
Essa decisão se fundamenta nos artigos 1º e 2º; 8º e 25 da Convenção, que impõe aos Estados o dever de respeitar e garantir os direitos nela previstos, além de assegurar garantias judiciais, dever de adotar medidas legislativas e de outra natureza para efetivar os direitos e proteção judicial efetiva, como direito a recorrer das decisões, por exemplo.
Significa que, pelos preceitos da Convenção, não é admissível anistia para crimes contra o estado democrático de direito.
Âmbito interno
A Constituição Federal, no artigo 48, VIII prevê como uma das competências do Congresso Nacional, dispor sobre a concessão de anistia, com sanção do Presidente da República, ou seja, o legislativo pode editar uma nova lei com novas hipóteses de anistia.
Entretanto, a própria Constituição veda anistia para crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e hediondos, não havendo nenhuma disposição sobre os crimes contra o estado democrático de direito, embora a concessão de anistia para esses crimes atentaria contra o núcleo essencial da Constituição (cláusulas pétreas), com forte proteção também em tratados.
Finalidades
A anistia costuma estar ligada a momentos de transição política ou de pacificação social, buscando extinguir a punibilidade por condutas ilícitas praticadas, visando:
- Restabelecer a harmonia entre grupos em conflito;
- Reintegrar indivíduos ao convívio social;
- Consolidar mudanças de regime político.
Sua aplicação é retroativa, atingindo fatos já praticados. Em outros termos, a anistia exclui o crime, apagando seus efeitos, inclusive, se praticado novo crime, não ocorrerá reincidência ao acusado, podendo ser concedida antes ou depois da sentença, cuja competência é do juízo das execuções.
O dilema pacificação social e a impunidade
O debate atual, ao redor de episódios recentes de convulsão política, envolve questões de âmbito ético, político e jurídico. De um lado, demonstra-se como instrumento de reconciliação nacional, permitindo que sociedades superem momentos de ruptura. Já sob os olhares internacionais, há o temor de que ela funcione como um salvo-conduto para aqueles que atentaram contra a ordem democrática e os direitos fundamentais, com reiteradas decisões vislumbrando a segurança jurídica.














