A autoridade dos jogadores que dão empurrões em técnicos
Eles acabaram se tornando personagens de si mesmos, muitos mimados, criando nova modalidade: a de quem mais cerca o árbitro
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
O diretor sempre teve fama de durão. Quando os alunos, na classe, ouviam passos mais fortes nas escadas, seguidos de um grito "Ôôôô!!!", estremeciam nas carteiras. Seguravam com mais firmeza a placa que apoiava o caderno e sentiam um suor frio escorrer pelas mãos. Era uma forma de autoproteção, na tentativa de manter uma identidade diante da fúria que, em segundos, entraria pela porta como os mais fortes ventos do Pacífico.
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Em seu discurso moralista, exigia das crianças uma rigidez que nem sempre era benéfica. Algumas vezes realmente seus conceitos eram adequados, muitas vezes exaltando a necessidade da disciplina como uma forma de vencer na vida: "Quem não se organiza, faz duas vezes", repetia.
Em outras, porém, os exageros retóricos o levavam a valorizar mais o discurso do que uma realidade subjetiva que passa na alma e na mente de cada um e que, por não se inserir nestas definições implacáveis, acaba sendo confundida com falta de respeito, indisciplina, indolência, incompetência. Quando na verdade é uma saudável forma de compreender a si mesmo e ao mundo.
Numa das vezes, por exemplo, ele entrou daquele jeito na classe e, com sua voz contraditoriamente fina, temperada por um tom raivoso, ordenou que todas as meninas se retirassem.
Já sem a presença feminina, iniciou a bronca com um sonoro tapa na perna de um dos meninos, que estava de calção, seguido da pergunta: "Vocês são homens ou não?"
E continuou seu sermão andando lentamente por cada degrau das fileiras de cadeiras, até convercer todos de que não passavam de farrapos humanos porque tinham brincado de abaixar a calça um do outro no recreio.
O mundo, então, era dividido entre autoridade imposta e seguidores submissos. Professor e aluno. Jogador e árbitro. Pais e filhos. Moralismo e imoralidade.
Se um aluno respondesse para um professor, na época, mesmo com argumentos sólidos, correria risco de ser severamente punido. Se um jogador discordasse de um árbitro, tomaria uma punição gigantesca. Se um filho ousasse contrariar o pai, possivelmente era surra na certa.
Essa atmosfera contribuiu para que, com um misto de revolta e esperança no futuro, uma geração crescesse buscando modificar esse panorama. Fazer justiça. Algo similar aos baby bommers (nascidos entre os anos 40 e 60) e que, indignados com as guerras, ajudaram a moldar conceitos da geração paz e amor.
Muitas conquistas vieram, como uma maior intolerância ao racismo e ao preconceito. Assim como a luta das mulheres pela igualdade.
Mas, em outras situações, a justiça se tornou vingança. Envolvidos por crises sociais cada vez maiores, desigualdades, violência e o poder financeiro da globalização, tais preceitos acabaram se tornando apenas teóricos. E também rígidos.
Valores como respeito, disciplina, empatia, acabaram sendo subestimados, em função do "tudo posso". De um laissez faire mal-compreendido, em que o indivíduo é a base da sociedade apenas para proveito próprio, e não da sociedade.
Neste sentido, um vazio criativo e emocional se agigantou. O aluno já não precisa do professor, pode se dar muito bem na vida jogando Fortnite o dia inteiro. Atirando virtualmente em quem quiser. O filho não pode ser contrariado pelo pai. E a celebridade tem direito a tudo, porque o dinheiro e a fama se tornaram seu principal cartão de visitas.
Jogadores de futebol acabaram se tornando personagens de si mesmos. Muitos deles mimados, seguindo o roteiro e criando uma nova modalidade: a de quem mais cerca o árbitro.
Tudo, para o torcedor ver. Para ser aceito no grupo. O respeito, fica apenas nas falas de fachada, quando interessa.
Assim, jovens jogadores têm se arvorado no direito de empurrar, desrespeitar técnicos adversários, no embalo distorcido de considerar que o respeito aos mais velhos ou ao outro é uma necessidade antiquada.
O radicalismo foi levado para o outro lado da moeda e permitiu que cenas como o empurrão de Viña em Renato Gaúcho e o tranco de Marcos Rocha em Cuca, um treinador que passou por cirurgia cardíaca e covid-19, fossem vistas como algo banal.
Assim como a cotovelada de Luan no rosto de Diego Souza, que, por motivo similar, fez o lateral Leonardo se tornar manchete mundial na Copa de 1994, foi considerada por muitos apenas "coisa de jogo".
Os algozes de outrora se inverteram. A voz do diretor daquela escola dos anos 70, hoje em dia, já nem seria ouvida. Por sua própria responsabilidade também, de semear a discórdia no lugar da sabedoria.
Hoje ele entraria na classe como um leão manso. Seria melhor até não falar mais nada. Para não correr o risco de ser colocado na cadeira por um aluno. E, no mínimo, levar um sonoro tapa na perna, que o remeteria àquela injusta sensação de farrapo humano.
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