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Amiga de Anne Frank: 'Minha vingança foi sobreviver'

Em entrevista exclusiva, ela fala sobre campo de concentração, onde se reencontraram antes da morte de Anne, e ressalta a importância da memória

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

Nanette (esq.) estudou na mesma escola que Anne (dir.)
Nanette (esq.) estudou na mesma escola que Anne (dir.)

A senhora Nanette Blitz Konig, de 89 anos, entra na pequena sala de conferência em passos lentos, na sinagoga do Beit Chabad, em São Paulo. Enquanto caminha entre as filas de cadeiras, um olhar curioso e ao mesmo tempo cansado se revela.

Senta-se com certa dificuldade enquanto confessa, para o rabino Eddy Khafif, que, devido às doenças que teve no campo de concentração, não pode mais jejuar no Yom Kipur, ritual da mais sagrada celebração judaica. É uma forma de mostrar que ainda se preocupa com sua religião.

Pode-se dizer que, em seus olhos azuis, misturam-se o passado - no cansaço que até hoje perdura por causa do sofrimento - e o presente - na curiosidade e no otimismo abertos a novas experiências.

Como mensagem de prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz foi decifrada após 7 décadas escondida


Nanette foi uma das últimas amigas de Anne Frank, a famosa menina que teve de se esconder com familiares e outras pessoas no sótão de um prédio em Amsterdã. Como Anne, foi levada ao campo de concentração.

Mas, diferentemente da amiga, que escreveu o diário enquanto viveu clandestinamente, sobreviveu às atrocidades nazistas. O regime autoritário buscava a recuperação da Alemanha, culpando principalmente os judeus pela crise após a Primeira Guerra Mundial.


Nanette ao lado de John, com quem se casou em 1953
Nanette ao lado de John, com quem se casou em 1953

Nanette e Anne se conheceram em outubro de 1941, após os nazistas exigirem, entre outras coisas, que os judeus estudassem em escolas específicas para a comunidade da Holanda. Essa situação de tensão, certamente, tirou muito da alegria na rotina das meninas até então. Elas vinham de bairros diferentes.

— As circunstâncias fizeram com que nos tornássemos amigas. Todo o nosso grupo era muito unido, diante das adversidades do regime. Anne era uma menina simples, como qualquer outra. Era também muito simpática, cativante. Estudamos juntas na mesma classe a partir de outubro de 1941, no liceu judaico.


Nascida em Amsterdã em 1929, Nanette afirma que, em junho de 1942, no aniversário de 13 anos de Anne Frank, ela viu o momento exato em que a menina recebeu um presente especial.

— Fui à sua festa de aniversário e vi o primeiro diário que ela recebeu de presente dos seus pais.

Anne no esconderijo

Naquele mesmo ano, elas não se viram mais em Amsterdã, já que Anne foi morar clandestinamente com a família e outras quatro pessoas (Hermann van Pels, Auguste van Pels, Peter van Pels e Fritz Pfeffer) no sótão da antiga fábrica de seu pai, Otto Frank. Alguns funcionários os ajudaram a permanecer escondidos.

A decisão foi tomada após a convocação de Margot, irmã de Anne, para comparecer a um campo de trabalhos forçados nazistas. Sem alternativas, Otto viu que era hora de se esconder, esperando a rendição nazista. Nanette não sabia dos planos da família da amiga.

— Espalhou-se pela cidade o boato que eles tinham ido para a Suíça. Havia três classes no primeiro ano do liceu. Dos 30 alunos da minha classe, só sobraram 14 para frequentar o segundo ano.

A perseguição nazista na Holanda contou com um alto grau de colaboracionismo. Dos 140 mil judeus residentes em Amsterdã na época, cerca de 110 mil pereceram, um dos índices mais altos entre os países europeus.

E, para causar maior atrito entre a comunidade, os nazistas obrigavam o Conselho Judaico, órgão representativo, a transmitir as decisões. A prefeitura da cidade ajudou na logística e mapeou a residência de todos os judeus, logo encontrados. Somente 11% dos que tentaram fugir ou se esconder sobreviveram.

Uma noite, Nanette dormia quando ouviu assustadoras batidas na porta de sua casa. Eram os oficiais nazistas, que a retiraram com a família, levando-os para o campo de transição de Westerbork, de onde foram transferidos, por trem, ao campo de Bergen-Belsen, onde ela permaneceu por quatro anos.

Nanette contraiu várias doenças e saiu de lá com menos de 30 quilos, passando depois três anos para se recuperar em um hospital perto de Haarlem, na Holanda. A mãe dela morreu após se libertada do campo de Beendorf e ter de caminhar 12 dias. 

O pai morreu em Bergen-Belsen em 1944. E o irmão foi deportado para o campo de Oranienburgo onde provavelmente foi morto assim que chegou. O outro, mais novo, havia morrido em 1936.

— Entre setembro de 1944 e abril de 1945, quando Bergen-Belsen foi libertado, fiquei sozinha, havia perdido toda a minha família.

O reencontro e o diário

Ela conta que então voltou a ver Anne Frank, naquele campo. Bergen-Belsen era dividido em vários campos. Ela a viu do outro lado.

— Reconheci Anne, reduzida a um mero esqueleto, através de uma cerca de arame farpado em janeiro de 1945, quando eu estava no campo pequeno de mulheres, que se encontrava ao lado do campo grande de mulheres.

A imagem da amiga a comoveu. Como deve ter comovido Anne ver Nanette também em condições precárias, sozinha e à mercê dos cachorros ferozes do famigerado comandante Josef Kramer.

— Além de tudo, eu tinha muito medo dos cachorros, treinados para atacar.

Mas em fevereiro de 1945, o arame farpado foi removido. A primeira coisa que veio à cabeça de Nanette foi procurar Anne e Margot. Quem sabe elas não poderiam juntas viver a doçura da libertação, vivendo pela primeira vez uma amizade sem medo? Mas não...

— Sabia que Anne poderia estar no mesmo campo que eu e fui procurá-la. Achei Anne e Margot. Jamas esquecerei nosso encontro emocionante. Quando encontrei Anne em Bergen-Belsen, ela tremia de frio, estava embrulhada em um cobertor porque não aguentava mais a sua roupa cheia de piolhos e estava completamente debilitada. Isto foi mais ou menos um mês antes do falecimento dela.

Anne contou para Nanette a ideia do que seria conhecido no "Diário de Anne Frank", escrito pela menina enquanto ela morava no sótão em Amsterdã, e recebido por seu pai, de um ajudante, quando ele saiu do campo - Otto foi o único sobrevivente da família. Ela morreu naquele mesmo mês de fevereiro, provavelmente de tifo epidêmico.

— Em nossa conversa Anne me contou sobre Auschwitz (campo onde passou um tempo), o esconderijo, e também falou sobre o diário, torcendo para que fosse encontrado, pois queria usá-lo como base para escrever um livro depois da guerra.

E veio o fim da guerra naquele ano. Mas a proximidade da libertação não significou a sobrevivência para Anne e Margot. Já no hospital, para onde foi transferida após ser salva e ajudada por ingleses (a família da mãe dela era inglesa), Nanette recebeu uma carta de Otto, querendo saber se poderia visitá-la.

— Respondi que sim, tentei animá-lo dizendo que ao meu lado no hospital estava uma moça que foi deportada de Westerbrok para Birkeneau junto com a esposa de Otto (Edith) e as meninas (Anne e Margot) e que ela disse para as duas, já em Bergen-Belsen, que a mãe havia sobrevivido (o que depois não ocorreu). Isso o animou. Ele chegou um dia e me contou sobre seus planos de publicar o diário. Mas nem imaginava a fama que esse livro iria obter depois.

Nannete depois foi morar em Londres, em 1949, trabalhou como secretária bilíngue e conheceu seu marido John Konig, com quem se casou em 1953, antes de vir morar no Brasil.

Tem duas filhas, um filho, seis netos e quatro bisnetos. E, já avó, se formou em Economia pela PUC, em 1986, e no curso de tradutor e intérprete do Alumni. Auxiliada pelo marido John, de 91 anos, que também participa das palestras, ela corre o Brasil e o mundo dando conferências, como voluntária.

Ela sempre diz que quem sobreviveu pode ser considerado uma vítima ainda maior, pois "a mente não apaga certas coisas". E atua para que as próximas gerações se mantenham informadas sobre tudo o que ocorreu.

— Quantas vezes já ouvi falar em "Holocausto nunca mais", porém duvido que todos entendam o que isso realmente quer dizer. Temos de assumir nossa cota de responsabilidade, elegendo políticos compromissados com a democracia e com os direitos humanos, mas também devemos assumir no dia a dia uma postura de respeito e tolerância.

Ela ressalta a importância da memória. Que, assim como o de Anne Frank, também exige um trabalho diário.

— Em pouco tempo, não teremos mais sobreviventes para contar a história. Cabe aos jovens assumir essa função. Vingança? Não posso desejar isso, desta maneira. Minha vingança foi sobreviver e trabalhar para que a minha história - e outras - nunca mais seja esquecida.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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