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Decreto na Polônia esconde perseguição sofrida pelos judeus

Antissemitismo polonês foi uma realidade anterior ao nazismo e à implantação de campos de concentração 

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky

Muitos judeus do pós-guerra se recuperaram, em Israel, do trauma
Muitos judeus do pós-guerra se recuperaram, em Israel, do trauma

Assim que entramos na cidade de Kfar Saba, próxima a Tel Aviv, pelas estradas amplas e rodeadas de shoppings centers e vegetações, entendemos um pouco mais o que é Israel. A leveza de uma vida urbana tranquila resplandecia na cidade. Estacionei em uma rua residencial, com prédios cercados de canteiros de jardins, apreciando a placidez da noite.

Na esquina com a rua Weizman, uma das mais movimentadas, encontramos um ótimo restaurante japonês, de design moderno e boa comida. Após a refeição, saímos então, já tarde da noite (23h é considerado um horário muito avançado), para chegar à casa de Sara e Schlomo, perto de um belo parque e do estádio do Hapoel Kfar Saba.

Eles nos esperavam, na casa de dois andares com um espaço gramado atrás, esbanjando o mesmo carinho e cordialidade que caracterizaram toda a nossa estadia por lá. E demonstraram um aspecto saudável em relação aos judeus da chamada velha geração (ela tem 68 e ele, 70) que vivem em Israel.

Nada de truculência. Nada de trauma e nada de desconfiança em relação às belezas da vida, imagem estereotipada que prevaleceu sobre esta geração, filha dos que sofreram na Segunda Guerra, por muitos anos.


Israel, afinal, também serviu para isso. Como o hebraico se renovou com Ben Yehuda, nos anos 20, o povo judeu se viu em condições de se renovar em um novo país, em que ele era o protagonista, podendo substituir a dor do preconceito pela esperança de uma convivência pacífica.

Sem ressentimentos, mas com a verdade. Em sua cozinha confortável, cercada por armários embutidos no teto e sem separação da ampla sala, como é comum nas decorações locais, Sara me contou como os judeus eram discriminados na Polônia nos anos 30, onde nasceram seus pais.


Minha avó já havia deixado a Polônia em 1929, para ir ao Brasil. Outros lá ficaram, em Varsóvia, sofrendo perseguições, com menos direitos do que os poloneses, vivendo em um local que se mostrava fértil para implantação de um regime nazista.

Até que o tio Herch, irmão de minha vó, um dia entrou correndo no pequeno prédio em que a outra irmã, Hannah (mãe de Sara) e de suas irmãs, a adorável Shoshana, e Hava, vivia e exortou ela e os outros presentes a saírem de lá imediatamente.


A situação estava crítica para a comunidade judaica, com os alemães na iminência de entrar na cidade e muitos poloneses preparados para denunciar o máximo de judeus possível.

Apenas Hannah e Esther (a outra irmã) o seguiram. Na família, ficou a lenda, com fundo de verdade, de que o tio Herch as salvou. Elas continuaram a se comunicar esporadicamente por cartas com minha avó no Brasil. 

Outro irmão, com o qual perderam contato, se estabeleceu no Rio. O restante, de um total de nove irmãos, morreu nos campos de concentração.

Antes, os soviéticos fizeram uma convocação para o Exército. O marido de Esther, na tentativa de sobreviver com a família, preferiu aderir às tropas, que ainda dominavam a Polônia, e foi, na verdade, capturado, sem que nunca mais se soubesse dele.

Essas histórias, porém, não fizeram o dia a dia de Sara se tornar amargo. Com seu semblante doce, por trás de amplos óculos, ela exibe tranquilidade e gentileza. Schlomo, um alto oficial do exército com destaque por trabalhos científicos, também passa a naturalidade discreta daqueles que têm consciência limpa em relação ao que são. E aproveitam a vida sem ostentação, com honestidade e ânsia de acolher.

A determinação do governo da Polônia, implementada neste mês, de negar o antissemitismo naqueles tempos, não passa de um artifício traiçoeiro, para esconder uma realidade de preconceito que pairou no país. Algo semelhante aos julgamentos da Inquisição, apegados a formalidades hipócritas. O governo da Polônia se apega apenas a um jogo de nomenclaturas.

Será punido aquele que se referir aos campos de concentração como algo polonês. E o antissemitismo que predominou nos anos 20 e 30, antes da implantação destes?

A família de Sara, por exemplo, que vivia com conforto antes da Primeira Guerra Mundial, sendo proprietária de uma empresa de fumo, perdeu tudo e passou a ter sérias dificuldades, em razão de boicotes econômicos, com a estatização, que também causaram a demissão de judeus.

Em 1931, um milhão deles estavam desempregados no país. Naqueles tempos a Polônia tinha 3,3 milhões de judeus e, ainda após a Segunda Guerra, a perseguição prosseguiu.

Poloneses realizaram o Pogrom de Kielce, em 1946, quando os alemães já estavam derrotados, no qual morreram centenas de judeus, que resistiam entre os poucos que haviam sobrevivido naqueles anos.

A postura do atual governo polonês, comandado pelo ultranacionalista Partido Lei e Justiça (PiS), se esquiva de uma discussão significativa sobre a atuação da sociedade polonesa antes, durante e depois da Segunda Guerra, quando o colaboracionismo com o regime nazista também foi uma realidade.

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Fica parecendo mais uma tentativa de ganhar visibilidade, com um subterfúgio que busca, em troca de aplausos internos, culpar o outro e esconder a real responsabilidade por uma crise, por um fracasso, por um momento histórico. Uma atitude que resvala em um autoritarismo, forte na aparência, mas no fundo decadente, diante do crescimento de forças progressistas antagônicas.

Isso inclusive poderia ofender pessoas como Sara, cujos familiares - também meus - sofreram com o antissemitismo na Polônia, ainda antes da implantação do nazismo. Mas, a esta altura da vida, e de todas as suas conquistas, tenho certeza de que ela nem liga.

Já em relação a mim, que moro no Brasil, país que também tem mascarado sua história, e não sou tão bem resolvido, posso dizer que a insensibilidade humana ainda me tira o sono. Talvez esteja precisando colocar mais Israel dentro de mim ou, pelo menos, de um Lexotan.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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