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O 'pontinha' que um dia calou o menino tagarela

Seus olhos ficavam vidrados quando lá vinha ele, enfileirando, criando, abrindo espaços do nada, decifrando os caminhos até chegar à área

Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7

Quando menino, sempre que se via em dificuldades, ele começava a tagarelar.

Falava, falava e falava diante de uma equação de segundo grau.

Diante da geografia e seus relevos, diante de um livro que não entendia.

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As pessoas da casa ficavam atarantadas com a metralhadora de palavras. Só sossegavam uma vez por semana, quando ele parava em frente à televisão para ver uma partida de futebol.

O rolar da bola o hipnotizava de forma tal que era como se cada passe marcasse o ritmo de sua respiração.


Para ele, a sala e o entorno pareciam se extinguir diante da tela. Suas retinas dançavam com o movimento dos jogadores, com os urros da torcida, com as informações dos repórteres, com os jingles dos patrocinadores.

Tudo ali era surpreendente. Até se viu um dia torcendo pelo time adversário... Por causa de um ponta-esquerda encardido.


O pontinha era impossível. Era destro, jogava com o pé trocado. Ficava parado na frente do marcador, como se o controlasse. O outro ficava com o olhar preso na bola, os pés plantados, trêmulos, à espera da ação repentina.

O estádio inteiro ficava na expectativa. E os telespectadores também. O mundo do futebol parecia parar para ver o que o pontinha iria fazer. "Só mágico", diziam os céticos.

Aí o jogador, dono das atenções, tomava a iniciativa. Ora gingava curto para direita, torcendo o adversário para a esquerda e, na brecha, avançava como se adentrasse em um latifúndio.

Ora ia pela direita, sem ginga sem nada, simplesmente esperando um gesto mínimo do marcador, de distração, de oscilação para um lado. E atravessava o espaço, desafiando leis da física.

Muitas vezes, outros defensores eram obrigados a se amontoar ao lado do combatente, tentando ajudá-lo. E se tornavam presas fáceis, como se fossem um só, confundindo-se, trombando, caindo no chão após um simples toque.

Nestas situações, o silêncio do menino se ampliava. Nem um olhar para o lado.

Seus olhos ficavam vidrados quando lá vinha ele, enfileirando, criando, abrindo espaços do nada, decifrando os caminhos até chegar à área, como se visse fios invisíveis que levavam à saída do labirinto. E que ninguém via.

O menino, então, se sentia dentro do campo. Se via como aquele jogador. Se via conseguindo decifrar os enigmas da matemática, conhecendo os relevos das regiões, compreendendo os enredos do romance.

Percebia-se, ainda mais, entendendo as intenções ocultas das pessoas, sabendo lidar com a hipocrisia, conhecendo o potencial que existia dentro dele. Driblando os percalços tal qual fazia aquele encantador da bola.

A partir da primeira vez, cada jogo em que o pontinha estava era o momento de silêncio maior. Foram meses, anos, diante da tela, esbaldando-se em um repertório de soluções que não se esgotava.

Para o pontinha, sempre havia uma saída. Ele podia perder uma ou outra bola mas, na seguinte, haveria a compensação. Tudo era um grande brincadeira que dava certo no fim.

Até que, num domingo qualquer, algum desses marcadores da vida, conseguiu pará-lo. Justo ele, que sempre se livrava dos pontapés, se reerguia e partia para cima, sem mágoas.

Mas o bigodudo o acertou no joelho. Ele voou, com os olhares atônitos dos torcedores, dos telespectadores, dos narradores, até despencar na grama como fruta madura, mordida, sentindo nos lábios o gosto amargo da terra em que sempre pisou com ternura.

O grito do menino assustou a casa. Foi um grito que misturava horror e desabafo. Que atravessou a cidade, como uma mensagem para o atingido. Era algo como um "Farei por você".

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Aos poucos, foi-se percebendo que ele não mais tagarelou, como se tivesse incorporado um método. Falava com calma, com alegria, transformando em orgulho a outrora preocupação dos familiares.

O pontinha, coitado, nunca mais foi o mesmo. Trocou de time e depois vagou pelo interior até o fim da carreira.

Mas, em um repertório de dribles, gingas e penetrações no seu dia a dia, o menino foi superando barreiras. Virou adolescente. Até passou de ano. Até entrou na faculdade.

Considerou-se um tanto vingado daquele pontapé que lhe doeu na alma. Se o pontinha soubesse, poderia até se sentir consolado.

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Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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