O sentido dos Beatles e de todas as coisas
Quando Ringo fez 80 anos, uma realidade humana contraditória se mostrou, pairando entre saudade e esperança
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
No tempo de lives da pandemia, Ringo Starr revelou o distanciamento natural do ser humano. Seus olhos são ainda inocentes, o nariz continua volumoso. No rosto, o mesmo sorriso de menino. Mas ele estava em uma live, falando da trajetória. Não mais se apresentando em um palco para multidões, como no auge.
Tudo isso foi Yesterday. Foi bonito vê-lo realçando esperança aos 80 anos, completados em julho último. Mas não nego a tristeza de vê-lo falar apenas com ternura de Paul McCartney. Apenas com ternura. Saudoso, mas sem nenhuma lágrima desesperada de saudade.
Brincou, como sempre, ao falar sobre Paul, reafirmando que se trata de um bom amigo, que viveram belos momentos e tudo mais.
Então, a realidade humana contraditória se mostrou, no rastro da magnitude atingida e dos gritos ensandecidos dos fãs dos Beatles, que ainda ecoam ocultos pela humanidade. Somos seres sociais, mas ao mesmo tempo solitários.
Desde criança, eu sonhava com a plenitude, ouvindo músicas românticas e impelido pelos mistérios da noite, das nuvens em movimento, das estrelas cravadas no firmamento, no manto escuro do céu, que dava uma sensação de tela de cinema, projetando sonhos que alcançaríamos lá na frente, atrás da linha do horizonte, também sempre contemplada por mim com encanto.
Queria mesmo ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar, parafraseando outro ícone, Roberto Carlos. Não sabia como conseguiria isso, mas me baseava, voltando aos Beatles, no lema All you need is love.
Então vieram as distâncias, impulsonadas pelo tempo e pelo espaço, movidas a mudanças, crescimentos, separações. Frustrações e percepção de que nem sempre o lado bom das pessoas prevalece.
A casa onde cresci, o menino em família, os amigos de infância, aqueles dias, tão assustadores e ao mesmo tempo protetores, se transformaram em lembranças, afastadas pela concretude da nova rotina, pelos diferentes caminhos, pelas conquistas e perdas.
Em minha ingenuidade infantil, não esperava por isso. A verdade é que minha timidez se acomodava na ideia de que um dia, lá na frente, quando eu tivesse a força de um adulto jovem, seria possível abraçar o mundo.
Tinha certeza de que iria encontrar a fórmula de manter todos sempre juntos, falando-se todos os dias, encontrando-se sempre, morando para sempre em um mesmo lar, somando família, amigos, dividindo mesas até tarde da noite, em uma grande comunidade que se sobrepusesse ao correr dos anos. Algo como em Utopia, o estado perfeito de Thomas Morus.
Tinha sede de preencher a solidão, de acreditar que algum superpoder uniria os dois conceitos, do ser social e do ser solitário.
Tinha convicção, então, de que esses dois lados seriam utilizados em todos os seus potenciais.
Era algo mesmo mágico, uma crença de que a lâmpada de Aladim atenderia meus desejos.
De um lado, eu seria o solitário a me preencher de inspiração nos momentos necessários e, de outro, temperaria com a permanente companhia de todos que um dia fizeram parte de minha história. Ao fundo, uma música romântica.
Mas não. Naquela live, Ringo Starr me mostrou, novamente, que não era bem assim. Falou com ternura de Paul, mas com um tom conformado. Todo aquele furor dos Beatles, os shows, as viagens, as multidões ensandecidas, o sucesso, a amizade, uma era inteira, parecia ter sido contido em algum lugar de seu interior.
E eu, teimoso, ainda achava que Ringo poderia se desesperar ao se perceber só em seu quarto, apenas acompanhado do som distante daqueles tempos sussurando em sua mente. E chorar para o mundo o seu desassossego.
E implorar no fim do desabafo: "Nunca se afaste de mim, Paul, vamos viver assim, grudados, para sempre!".
Não, Ringo parecia tranquilo justamente porque não se desesperava com isso, com o fato de não morar junto com Paul, de não falarem todos os dias sobre tudo o que passaram, de não cantarem sempre Let it be, de não compartilharem tudo, de não terem voltado após a separação, de não terem feito nada para evitar as mortes de John e de George, de não conseguirem impedir que o sonho acabasse, na concretude.
Claro, de alguma maneira, tudo isso permanecia dentro dele. Inclusive o amor por Paul e pelos acordes que compuseram a trilha de sua vida.
Mas, para mim, isso parecia pouco. Continuo utópico, ávido por colher porções do tempo e transformá-las em enternidade. Abrindo os olhos com uma dose de inconformismo quando, a cada manhã que nasce, tento em vão segurar aquilo que já passou.
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