Reflexões no fim de ano, de dentro de um botequim
Como na música de Lady Gaga, pessoas das quais se lembrava pareciam lhe pedir que ele mantivesse essa imagem delas para sempre
Nosso Mundo|Eugenio Goussinsky, do R7
Fim de ano. Sentado na mesa da lanchonete com uma ampla janela, ele vê, no céu, uma luz rompendo suavemente por entre delicados tufos de nuvem.
Pensou nos tufos como se fossem os dias do ano. Eles estão posicionados de forma intrigante, ao acaso, mas com uma geometria harmônica, dispostos lado a lado, de forma vertical.
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Na parte interna do local, com mesas até o fundo, cercando um balcão central, duas moças conversam enquanto tomam café. Na outra mesa, em diagonal, um homem de terno tecla no notebook.
O movimento diminuiu, mas algumas pessoas, com uma dose de nostaligia, ainda estão em atividade nos últimos dias de 2018, com um pouco do ritmo do restante dos meses.
É difícil parar no fim de ano. Por outro lado, é um momento de reflexões. As ruas, mais tranquilas, ganham contornos mais amistosos. E os acontecimentos vêm à mente como em um filme, neste caso embalado por uma bela música no rádio do botequim.
Como definir esse período? Naquele instante, tudo ficou bom, como se, diante daquelas nuvens, os dias tivessem escorrido lentamente. Lentamente? As pressões, as conquistas, viagens, erros e acertos se resumiam naquele instante.
Tudo parecia estar lá, naquele pedaço de céu, limitado por um prédio de vidro escuro e uma casa alaranjada, com afrescos na fachada.
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E raios refratários do sol desenhavam o acúmulo dos minutos, dos dias, dos anos, das décadas, dos séculos e dos milênios antes dele.
Aquele reflexo dourado apresentou vários rostos de pessoas que conhecia, desde o passado. Daquela luz, de profundidade infinita, enxergava um caráter acolhedor em cada uma das pessoas das quais se lembrava, mesmo as mais hostis e egoístas.
A música que ouvia era a de Lady Gaga, atual, romântica, Always remember us this way. Sempre se lembre de nós desta maneira. Bela canção em tempos pouco melódicos, mais afeitos à batida pulsante da pressa e da intolerância.
Mas, naquele momento, os seus personagens, que bem ou mal o ajudaram a chegar até ali, estavam pedindo justamente o que a letra da música dizia: lembre-se de nós desta maneira, como você nos está vendo neste momento.
Então ele aceitou as desculpas que nunca lhe foram dadas. Sentiu-se desculpado, mesmo nunca tendo tempo ou coragem de se manifestar. Brindou o que deveria ter brindado antes. E repetiu brindes que pensou terem se apagado no tempo.
Matou as saudades de quem já não conseguia mais alcançar fisicamente, mas que, de alguma maneira, ainda estava lá.
Viu-se ele mesmo lá em cima, pescando recordações e vivências, como aquele menino, sentando na curva da lua, do estúdio DreamWorks. Como se visse, no espelho, a sua infância.
Ao seu lado, pelas estrias de céu, sentia a presença de todos em quem pensava. E percebia que, a cada avanço em sua vida, não eram as pessoas que sumiam. Era o céu que se ampliava.
Até ficar tão luminoso, que ele teve de voltar, junto com a música da Lady Gaga, que estava em seus últimos acordes.
Já de volta, sentado na mesa, ouvindo o burburinho dos outros e a batida do liquidificador do bar, a realidade concreta se repôs à sua frente. Mas, como em um típico dia de fim de ano, mais amena.
Ele juntou os fragmentos de suas lembranças, sorveu o último gole de café, antes de se levantar. Voltou a cabeça em direção às nuvens. Melindrosas, elas já se juntaram e resistiam às avançadas do sol.
Captou todo aquele movimento de vida, tão lento, mas que, ao longo dos anos, passa tão rápido. Percebeu que tudo aquilo era apenas o seu olhar.
E mais uma vez, despediu-se daqueles rostos que vira há pouco. Com um até logo. Sabia que, se quisesse, iria vê-los novamente. Em qualquer outro pedacinho de céu.
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