Quadrilhas criam milhares de reféns de serviços piratas de banda larga no Brasil
Em diversas regiões, grupos criminosos roubam equipamentos e obrigam moradores a assinar serviços ilegais de internet
Rio de Janeiro|Do R7
Enquanto os moradores do Rio de Janeiro se abrigavam em casa por conta das medidas de isolamento social impostas na fase mais aguda da pandemia, o policial civil Gabriel Ferrando recebeu uma dica de que algo suspeito estava acontecendo com o serviço de internet na cidade.
O acesso à internet caiu em amplas áreas da comunidade Morro da Formiga, na zona norte da capital fluminense. Quando Ferrando perguntou a um técnico da operadora TIM encarregado de resolver o problema, o funcionário afirmou a ele que homens armados o expulsaram com um aviso para não voltar mais lá.
Acontece que um novo provedor de internet ficou com o território: uma companhia cujos investidores em um momento incluíram um suspeito de tráfico de drogas e armas e de ter vínculo com o grupo criminoso Comando Vermelho, afirmou Ferrando. A informação também consta de documentos encaminhados por autoridades e dados de junta comercial vistos pela Reuters.
Usando equipamento roubado, alguns da própria TIM, a nova empresa começou a oferecer seu próprio serviço de internet na comunidade, disse Ferrando. Os moradores do Morro da Formiga poderiam optar por ser assinantes do serviço ou ficar sem ter acesso a banda larga na região.
A TIM não comentou o assunto e o repassou para a associação de operadoras de telecomunicações Conexis. Em comunicado, a entidade pediu às autoridades do país que protejam o serviço de operadoras legítimas.
Ferrando, um veterano da equipe da Polícia Civil de combate ao crime organizado no Rio de Janeiro, está tentando fazer isso. Em um pacote selado de documentos que detalham meses de investigação, ele pediu ao Ministério Público do Rio de Janeiro para abrir processo contra os piratas. O MPRJ não comentou o assunto ao ser questionado pela Reuters, e nenhum processo foi aberto até agora para apurar o caso.
O Morro da Formiga não é a única comunidade a conviver com esse tipo de problema. A Reuters entrevistou quase duas dezenas de executivos da indústria de telecomunicações, autoridades, técnicos acadêmicos e clientes de serviços de internet no Brasil e viu milhares de páginas de documentos encaminhados à Justiça pela polícia.
As fontes e os documentos descrevem uma audaciosa campanha de sequestro de serviços de internet em dezenas de comunidades nas principais cidades do Brasil. Os crimes são praticados por companhias associadas a criminosos que não têm medo de usar força e intimidação para expulsar rivais de suas áreas de atuação. O resultado, afirmaram as fontes, é um quadro em que dezenas de milhares de brasileiros contam apenas com serviços de baixa qualidade de acesso à internet. A indústria e autoridades estimam que esta "grilagem digital" gere milhões de reais por ano em lucro para os criminosos.
Provedores piratas de serviços desaparecem quando o acesso à internet cai e ficam impacientes quando chega o dia de o cliente pagar a conta, disseram alguns usuários à Reuters. No bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, um morador descreveu como um cobrador bate à sua porta todos os meses para receber a mensalidade de 35 reais — em dinheiro.
"Eles pressionam a gente a pagar no dia que eles querem, e não podemos atrasar", disse um cliente que pediu para não ser identificado para não sofrer retaliação.
O número de roubos e destruição de equipamentos subiu 34% em 2020, representando cerca de 1 bilhão de reais em prejuízo anual, segundo a Feninfra, associação cujos membros incluem empresas de infraestrutura de telecomunicações. A entidade afirmou que o prejuízo aumentou 16% no primeiro semestre de 2021 sobre um ano antes.
O esquema
A indústria de telecomunicações não é o único alvo de quadrilhas. Criminosos há anos controlam distribuição de gás de cozinha, água e outros serviços básicos em muitas comunidades pelo país.
Mas, ao criarem as próprias redes de banda larga, os criminosos estão revelando um aumento de sofisticação, segundo mais de 20 especialistas, representantes da indústria e autoridades entrevistadas pela Reuters. Eles afirmaram que o esquema normalmente funciona desta forma:
Primeiro, ladrões roubam ou vandalizam equipamentos de operadoras tradicionais de banda larga. Quando a equipe de conserto chega ao local, ela é ameaçada por homens armados que mandam os técnicos não voltarem mais ao local. No ano passado no Rio de Janeiro, as "zonas de exclusão" subiram para 105 locais, segundo dados da Oi, operadora que está em recuperação judicial desde 2016. Esse número quadruplicou desde 2019, segundo a companhia.
Pouco depois que o serviço é interrompido, companhias de telecomunicações com laços com o crime organizado montam as próprias redes, aproveitando a infraestrutura sequestrada da operadora legalmente estabelecida. Em alguns casos, esses arranjos são operados diretamente por membros de quadrilhas que incluem o Comando Vermelho ou o Terceiro Comando Puro. Outras redes são organizadas por milícias. Em outros casos, a infraestrutura de acesso é operada por empresários que pagam criminosos para eliminarem a competição.
Os criminosos frequentemente recebem ajuda de funcionários corruptos das próprias operadoras, que vendem conhecimento técnico e equipamento, segundo o promotor Antonio Pessanha, que está investigando a atividade criminosa no setor de telecomunicações do Rio de Janeiro.
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Em um caso recente, um funcionário da Claro se ofereceu para vender equipamento da companhia para comparsas associados ao crime organizado, segundo registro de uma chamada telefônica que Pessanha afirmou que sua equipe obteve por meio de escuta. Ele não deu detalhes sobre o grupo ou identificou o funcionário da Claro ou outros participantes. A Claro não comentou o assunto.
Novo competidor
No Morro da Formiga, o policial Ferrando afirmou que começou a receber informações anônimas de alguns dos 5.000 moradores no primeiro semestre do ano passado. Eles afirmaram que os serviços de internet de banda larga das operadoras um dia pararam de funcionar.
Uma companhia domina esse mercado agora, disse Ferrando, uma empresa chamada JPConnect Serviços de Telecomunicações. A companhia foi criada em 2019, segundo documentos da Junta Comercial do Rio de Janeiro vistos pela Reuters.
Os registros mostram que até o fim do ano passado a JPConnect era em parte controlada por um indivíduo chamado Paulo Cesar Souza dos Santos Jr., acusado por autoridades de ser membro do Comando Vermelho. Em 2011, Santos foi indiciado por tráfico de drogas e armas, de acordo com documentos judiciais vistos pela Reuters. Mais tarde, ele foi absolvido.
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Santos transferiu sua participação de 50% na JPConnect em setembro do ano passado para outro investidor, Alexandre Rodrigues de Almeida, segundo os documentos vistos pela Reuters.
Em janeiro, policiais fizeram uma operação na sede da JPConnect, no Morro da Formiga, disse Ferrando. Ele afirmou que os policiais encontraram equipamentos pertencentes a TIM, Oi, Claro e Telefônica Brasil.
Todas as empresas não comentaram as afirmações de Ferrando, e a Reuters não conseguiu contato com representantes da JPConnect. O número telefônico registrado pela empresa não estava funcionando até a publicação desta reportagem.
O advogado de Santos e Almeida, Eberthe Vieira de Souza Gomes, afirmou que a JPConnect atua legalmente e que ganhou mercado com a oferta de um produto de qualidade. Ele afirmou que Santos não tem conexão com o crime organizado e citou que seu cliente foi inocentado de todas as acusações relacionadas ao indiciamento de 2011.
O presidente da associação de operadoras Conexis, Marcos Ferrari, descreveu uma série de problemas vividos pelo setor no Brasil atualmente, incluindo vandalismo, roubo, ameaça a funcionários e captura de áreas por grupos criminosos.
As autoridades precisam "combater este tipo de ação criminosa", disse Ferrari.
No Rio de Janeiro há uma série de outras operadoras de serviços de banda larga sob investigação, afirmam autoridades.
Entre elas está a Net&Com, que chegou às manchetes em março do ano passado quando a polícia fez uma operação na sede da empresa no centro da cidade, como parte de uma investigação relacionada a tráfico de drogas. A polícia afirmou que a empresa é investigada por supostamente pagar criminosos associados ao Comando Vermelho para ajudá-la a controlar o mercado de telecomunicações em comunidades carentes na região metropolitana.
Nos documentos, autoridades afirmaram que a Net&Com pagava a quadrilha para expulsar competidores dos bairros onde a empresa opera atualmente. A Net&Com e seus executivos não foram acusados no processo.
Pedro Santiago, advogado da Net&Com, afirmou que a empresa é uma "vítima de uma caça às bruxas". Ele afirmou que acompanhou horas de gravações de escutas telefônicas feitas pela polícia e que elas não mostram nenhum vínculo entre a empresa e criminosos.
A polícia, nos documentos vistos pela Reuters, afirma que foram encontradas evidências de equipamentos roubados e conversas entre os participantes do esquema que mencionam o papel da Net&Com.
Pessanha, do MPRJ, afirmou que a investigação continua. "O novo ouro agora para a atuação criminosa é esse do serviço de internet."