“Achei que estava sendo levado para um albergue”, diz professor internado em hospital pela prefeitura de SP
Ministério Público investiga denúncia; Prefeitura diz que internação foi voluntária
São Paulo|Diego Junqueira, do R7

Dependente de álcool e vivendo em situação de rua no centro de São Paulo, um professor de 32 anos afirma ter sido internado em um hospital psiquiátrico contra a sua vontade, após pedir ajuda a funcionários do programa Redenção, da prefeitura, para encontrar um lugar para dormir. O Ministério Público investiga o caso.
— Eu pensei que estava indo para um albergue. Não desconfiei que estava sendo internado quando chegou a ambulância.
Professor em projetos culturais (sua identidade será preservada pela reportagem), ele já passou por diversos albergues e centros de acolhida próximos da região conhecida como Cracolândia — local de venda e consumo de drogas, sobretudo o crack, no bairro da Luz.
Na noite de 30 de maio, após passar 18 dias internado no CAPS Prates (Centro de Atenção Psicossocial), ele encontrou fechado o Espaço Luz, na praça Princesa Isabel, onde costumava ser acolhido e que foi desativado. Foi quando ele buscou a tenda do programa Redenção, na rua Helvétia.
Em depoimento ao R7, ele conta que foi encaminhado de ambulância até a Casa de Saúde São João de Deus, no Jaraguá, zona norte da capital, onde ficaria internado por cinco dias. Ele afirma que só se deu conta da internação quando chegou ao local.
O R7 teve acesso ao documento de internação voluntária, que foi assinado pelo paciente quando ele já estava no hospital. O professor diz que só aceitou a internação no primeiro dia porque precisava de um lugar para passar a noite. No dia seguinte, contudo, ele pediu para deixar o hospital, mas alega não ter sido liberado. Em casos de internação voluntária, a liberação a pedido do paciente deve ser imediata.
A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo diz que o rapaz “foi encaminhado para internação voluntária na Casa de Saúde São João de Deus, conforme documentos apresentados pela unidade com a devida assinatura concedente do paciente” e que “após cinco dias de internação, o paciente solicitou alta, sendo prontamente atendido”.
O hospital psiquiátrico foi procurado, mas não quis se manifestar.
Leia a seguir o depoimento do paciente ao R7:
A internação
Ninguém avisou nada que ia fechar. Foi do nada. Me falaram “o Espaço Luz fechou”, que foi em cima da hora, que trocaram de endereço. Minha mochila ‘tava’ lá dentro, a assistente social autorizava guardar [objetos] no maleiro. Esse albergue ‘tá’ na Mooca agora.
Antes de ir [para a tenda do Redenção] eu tinha dado um gole de álcool, mas estava totalmente são. ‘Tá’ até lá no meu relatório que eu ‘tava’ patrão.
Aí cheguei na tenda do Redenção e não me explicaram nada, pra onde eu estava indo. O pessoal do Redenção mesmo, o doutor e as enfermeiras não sabiam pra onde eu estava indo. Ele fez uma avaliação de caneta, não passou por exame de nada, sangue, fezes, urina, não fez nada em mim. Só ficou perguntando o que eu usei, o que eu estava querendo. Perguntou qual era a droga que eu usava e eu falei que era a bebida. Me avaliou tudo. Eu pensei que estava indo para um albergue, um lugar pra dormir. Não desconfiei que estava sendo internado quando chegou a ambulância. Pensei que eles iam me mandar pro Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, na Luz) para fazer uma avaliação, ou que iam me mandar pra um albergue, algum lugar, e quando fui ver me mandaram lá para o São João de Deus.
[Na tenda do Redenção] em nenhum momento eles me falaram que estavam me avaliando para uma internação. Eu não falei que queria ser internado. No momento nada. Eu assinei porque eu quis assinar. O que eu achei injusto é que quando eu saí da São João de Deus e fui conversar com eles no Redenção, eles falaram que quem indica essa internação não são eles, é o Samu. Eles falam que já tem no sistema do Samu pra onde mandar os internos, pode tanto mandar pra São João de Deus ou para outras clínicas. Mas tem muitos usuários que estavam na Casa São João de Deus e que hoje estão na Cracolândia de volta e que falam muito mal da casa.
Percebi que estava sendo internado quando cheguei lá. Falei: “pronto, mano”. Desci da ambulância e já entrei. Quando eu vi onde estava, pensei: “internação”.
Lá dentro
Na primeira noite eu vi uma briga lá dentro de usuários batendo num outro usuário. Rasgaram o rosto dele com um negócio de varal, teve de tomar ponto no rosto. Era um cara que tinha sido trazido daqui [da Cracolândia], e os próprios caras da Cracolândia bateram nele lá dentro. Fora isso teve umas outras cinco brigas. Elas acontecem por questão da abstinência, ou por querer ir embora.
Não tinha espaço separado [para dependentes químicos]. Eu convivia com pessoas com [dependência de] crack, pessoal da psiquiatria, pessoas com problemas mentais, todo mundo misturado.
Cada um tinha seu quarto, com três pessoas. Eu dividi quarto com uma outra pessoa que foi internada comigo [na mesma noite] e mais um cara. Eu fiquei uns três dias com chuveiro gelado, porque o pessoal não arrumava o chuveiro.
Não posso reclamar da comida, que era boa. Café da manhã, almoço e janta, certinho. O leito também.
Tinha um espaço [externo] que era estilo uma área grande que o pessoal saía para fumar, mas tinha horário. Nove e meia abria e fechava meio dia pro almoço. Depois reabria às duas e fechava às sete da noite. Aí você assistia televisão ou ia dormir.
Lá dentro não tinha nenhuma atividade. De domingo o pessoal ia pra igreja, e sexta-feira o pessoal jogava bola.
Você vê a distância do lugar, porque eles te mandam pra longe mesmo. Quando me deram alta na segunda-feira, dia 5, não me deram nem passagem nem nada. Me soltaram. Eles levam mas não te dão uma ajuda de custo pra pelo menos te colocar no metrô pra você ir embora, pra você ter um sentido, ‘tá’ ligado, de caminho.
Eu topei [ficar lá quando cheguei] porque já era tarde, ia dar três horas da manhã. Aí pensei, “vou dormir”. Mas eu quis ir embora no outro dia. Tentei conversar com o pessoal mas foi difícil. Não me liberaram. Falaram que eu tinha que passar pelo médico, pelo psiquiatra, e o psiquiatra falou que eu podia ficar de 20 a 60 dias lá.
Depois conversei com a psicóloga de lá e com a assistente social e falei que eu tinha que conversar com alguém da minha família pra eles saberem onde eu estou, porque não é assim, me internar e ninguém saber.
Quando chegava essa psicóloga lá, era muita gente em cima dela, muita gente mesmo. É uma mulher só pra lidar com umas 50 pessoas. Todo mundo queria perguntar.
Me deram remédio de manhã, tarde e à noite. Tomava nove remédios por dia. Um pra ansiedade, um calmante e um pra dormir. À noite eles reduziam a dose, mas eram os mesmos remédios.
Um eles falavam que era pra ansiedade, então não me afetava em nada. Mas esse que era um relaxante muscular, esse laranja, eles me davam dose de 100 ml, eu ficava dopado. Você fica sem força. De tarde me dava sono, daí você queria dormir.
A saída
Eu quis ir embora e não me deixaram ligar. Foi quando eu implorei pra eu ligar pelo menos pra minha assistente social no Prates. Foi onde eu vi um computador e pedi pra mexer no Facebook. Me falaram que só era por dez minutos. Foi onde eu conversei com a ***. Mandei a mensagem pra ela e foi onde deu tudo certo, graças a Deus.
Achei muita injustiça. O cara te mandar pra um lugar onde não tem extintor, onde não tem segurança à noite, dois enfermeiros só pra umas 50 pessoas. Cheio de briga, e o médico fica em outra ala. Até eles subirem, até o segurança subir, já aconteceu m***, de agressão. [Os pacientes] quebram as coisas lá. Os próprios pacientes que separam as brigas pra não ter mais conflito.
Falei com a *** no terceiro dia. Levou mais um dia ainda, e no outro dia foi onde me liberaram. Na segunda-feira de manhã, no dia 5, tinha tomado o remédio pra dormir. Tava meio zonzo ainda, dopado, e anunciaram meu nome no microfone. “***, favor comparecer no posto de enfermagem”. Aí eu fui e falei: “pronto, pessoal vai me dar mais remédio”. Veio uma auxiliar de enfermagem da igreja e falou que eu tive alta. Aí fiquei besta.
Antes de eu sair eu pedi um documento pra eles, um papel pra falar que eu estava internado. Nisso eles não me deram passagem e não me deram nada. Me soltaram e essa auxiliar me deu 4 reais pra eu ir embora. Peguei o trem e desci aqui na Luz. Saí da Luz e pensei: “‘to’ livre, graças a Deus”.