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Após acusação de racismo, personagem pintado de preto é retirado de peça

Decisão foi anunciada por diretor do espetáculo durante debate nesta terça-feira

São Paulo|Ana Cláudia Barros, do R7

Peça foi criticada por trazer um dos atores, que interpreta uma empregada doméstica, com o rosto pintado de preto
Peça foi criticada por trazer um dos atores, que interpreta uma empregada doméstica, com o rosto pintado de preto

Na sala com capacidade para 210 lugares lotada, o público aguardava inquieto o início do debate "Arte e Sociedade: a Representação do Negro", no Itaú Cultural, na avenida Paulista, nesta terça-feira (12). Pouco antes das 20h, horário marcado para o início do evento, ainda havia fila na porta do instituto. A procura foi tão grande que a Sala Vermelha, localizada no andar acima e que comporta cerca de 70 pessoas, também precisou ser aberta.

Originalmente, o Itaú Cultural receberia nesta data a peça A Mulher do Trem, da companhia Os Fofos Encenam, dentro do projeto Terça Tem Teatro. Mas, no lugar, abriu espaço para a discussão. O motivo: uma enxurrada de manifestações na internet de repúdio ao fato de um dos atores do elenco, que interpreta uma empregada doméstica, atuar com o rosto pintado de preto — a comédia francesa, escrita no século 19 por Maurice Hennequin e George Mitchel, já foi encenada pela companhia. A primeira vez, em 2003.

O evento começou com meia hora de atraso e com um uma breve introdução do diretor do Itaú Cultural Eduardo Saron, enfatizando que aquele era "um momento histórico". Durante sua explanação, o educador, músico, pesquisador e representante do coletivo teatral Os Crespos, Salloma Salomão, um dos mais aplaudidos ao longo do debate, ironizou o comentário, diante de uma plateia atenta e participativa.

— Não é meu intuito causar frustração naqueles que pensam ser este um evento bombástico e inédito. Em 1969, após Wilson Simonal lançar a canção Samba do Crioulo doido, um grupo de artistas e ativistas negros, liderados por Martinho da Vila, entendeu que ali tinha um problema. Entenderam que o conteúdo da canção construía uma imagem negativa do compositor e sambista negro e reagiram criando um evento chamado Nem Todo Crioulo é Doido [...] O samba tornou-se bastante conhecido, mas o evento que o contestou, não.


Sem blackface

Havia uma expectativa em torno da fala do professor e pesquisador Fernando Neves, um dos diretores da Companhia Os Fofos Encenam, responsável pela montagem de A Mulher do Trem, comédia que tem inspiração na estética circense. Neves tentou explicar que o recurso de pintar o rosto do ator de preto não estava relacionado com o blackface, representação caricata de personagens negros, nascida nos Estados Unidos em meados do século 19. Pouco antes, o professor de teatro da Unesp e pesquisador do circo brasileiro, Mario Bolognese, havia defendido a mesma posição.


— O circo brasileiro não sabe o que é esse negócio de blackface [...] Ele tem sua matriz europeia, que vem da tradição da comicidade popular, que trabalha com personagens-tipos.

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Fernando Neves alegou que o referencial era a "máscara do negro", um tipo característico Commedia Dell’Arte, mas o rótulo blackface foi apontado por outros debatedores, como a Stephanie Ribeiro, estudante de arquitetura, blogueira e ativista, uma das principais responsáveis por desencadear a discussão sobre o tema nas redes sociais.

— É inadmissível para mim blackface em 2015.

Já Dennis Oliveira, professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e coordenador do coletivo Quilombação, destacou que a expressão simbólica do blackface é "duplo racismo", porque também impede a auto-representação do negro.

Fernando Neves afirmou que não tinha se dado conta do transtorno provocado e garantiu que a companhia se abriu para o diálogo e para ouvir as críticas. Emocionado, ele anunciou que retiraria aquele recurso do espetáculo e também foi muito aplaudido.

— Essa máscara tem que sair de cena, porque ela não foi criada para causar dor em ninguém [...] Apoio essas falas que ouvi até agora tão sábias, apoio plenamente. O que vai acontecer é que a gente vai retrabalhar. Quero agradecer muito e pedir desculpas a todos que eu tenha ofendido. 

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A atriz Roberta Estrela Dalva, uma das primeiras a falar, ressaltou que o foco da discussão não era a peça.

— O que acontece na peça é sintoma de uma doença culturalmente transmissível: o racismo.

Censura

A blogueira Stephanie Ribeiro defendeu que a manifestação na internet contra o espetáculo não foi uma forma de censura

— Quando a gente se manifesta, a gente não está censurando, a gente só está pautando o que ninguém tinha pautado antes, porque não tem nossa vivência. A gente está nesse debate para desconstruir. Então, a gente começa desconstruindo a ideia de a pele natural ser a branca. Eu sou negra, eu sou natural, não sou exótica.

O dramaturgo, roteirista e diretor Aimar Labaki, por sua vez, alegou que o episódio pode abrir precedentes.

— Se você tira uma peça de cartaz, seja lá qual for, porque uma parte da população, por mais que seja a maior parte da população, não quer que ela aconteça, nós abrimos um precedente em um país que é autoritário, um país onde não há a tradição da liberdade de expressão. Isso não significa que se deva calar a boca de ninguém, muito menos do movimento negro.

Já na fase em que o evento foi aberto a perguntas da plateia, o ator Carlos Ataide, que interpreta a personagem cujo rosto é pintado de preto, também decidiu se expressar. Ataide, que é afrodescendente, sugeriu que a questão não deveria se pautar na dicotomia racismo versus censura e agradeceu a chance de colocar a questão em sua vida.

— Agradeço a possibilidade de me rever como pessoa, como cidadão, como indivíduo, como artista. Eu acho isso de uma grandeza profunda.

"Um teatro sobre negros sem negros"

Salloma Salomão lembrou que a figura do negro construída na forma do grotesco e da caricatura pode ser encontrada em um longo espectro temporal da produção dramatúrgica, teatral, cinematográfica, televisiva brasileira.

— A estereotipia não é tão importante quando pensamos na quantidade de mortes sistemáticas de jovens negros nas periferias dos grandes centros. Mas certamente ao produzir e perpetuar a desumanização do contingente social negro potencializa e naturaliza o genocídio.

Ele criticou o que chamou de "um teatro sobre negros sem negros".

— A questão é: será que estaremos aptos para abrir um debate franco sobre a ausência de negros e de negras nesses espaços de criação, produção e veiculação de arte e cultura?

O debate foi mediado pelo ator Eugenio Lima, membro fundador da Frente 3 de Fevereiro e do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. O evento teve transmissão ao vivo pelo site do instituto.

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