Ataques do PCC: há 15 anos, crime organizado parava São Paulo
Atentados de maio de 2006 aterrorizaram a população do estado e resultaram em centenas de mortes de civis e agentes públicos
São Paulo|Cesar Sacheto, do R7
Há 15 anos, a população de São Paulo vivenciava uma onda de atentados terroristas que modificou o comportamento da sociedade. Durante o mês de maio de 2006, moradores da capital paulista ou de cidades da região metropolitana foram acometidos pelo sentimento de medo em razão dações violentas, praticadas por integrantes da facção criminosa PCC.
Pela primeira vez na história, a imagem da avenida Paulista — um dos principais símbolos da cidade — completamente deserta em um dia normal de trabalho era exibida nos telejornais, revistas e sites. Preocupados, os paulistanos adiantaram o horário do rush e voltaram mais cedo para a segurança das suas casas — anos depois, imagens semelhantes da metrópole vazia, cenas que chocaram a sociedade brasileira, foram revividas na pandemia de covid-19.
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O pano de fundo dos ataques seria a suposta rebelião da massa carcerária — foram registrados motins em 74 cadeias do estado — em face dos maus-tratos sofridos nos presídios, o desrespeito à lei de execução penal, a corrupção policial, entre outros fatores. A transferência dos principais líderes da facção às vésperas do Dia das Mães daquele ano, 765 presos para uma penitenciária de segurança máxima determinada pelo governo do estado, teria sido o estopim dos protestos.
Os alvos eram os agentes das forças de segurança do estado e muitos deles foram atacados durante o turno ou até mesmo na folga. Policiais militares, civis, bombeiros e agentes carcerários foram assassinados. Bases da PM, delegacias e outras instalações do governo foram cercadas por barricadas e eram locais evitados pela população por receio de ser atingida pelos estilhaços dessa guerra entre o crime organizado e o estado.
"Os atentados de 2006 vem de encontro a uma situação que tudo indica a massa carcerária queria das lideranças. O chefe anterior do PCC, Geleião, tinha feito uma série de ações espetaculares. Entre elas, a tentativa de explodir o Fórum da Barra Funda, colocar uma bomba na Bolsa de Valores de São Paulo. Esse tipo de ação vinha de encontro com o que a massa [carcerária] pensava de situação excludente: os presos ou a sociedade", relembra o procurador de Justiça aposentado Carlos Roberto Marangoni Talarico, responsável pela acusação de líderes do PCC em inúmeras condenações no Tribunal do Júri.
Entre os julgamentos por crimes praticados pelo PCC no estado, Carlos Talarico destaca o processo em que obteve a condenação de Marcos Wilians Herbas Camacho, conhecido como Marcola e apontado com a principal liderança da facção criminosa há décadas, a 29 anos de prisão pelo assassinato do juiz-corregedor de Presidente Prudente, Antonio José Machado Dias, morto em uma emboscada ocorrida no ano de 2003, em uma primeira onda de atentados.
"No júri do Marcola, fiz uma coisa que nunca tinha sido feita no Brasil: o júri sem rosto. Pedi, e o juiz deferiu, que não fossem anunciados os nomes dos jurados. Ao invés [disso], cada jurado tinha um número, era chamado e a gente [promotoria e defensores] aceitava ou não. [Como ocorreu no caso dos] juízes sem rosto da Itália, aplicado pela primeira vez no Brasil. Tinha uma base teórica do direito italiano e uma imagem muito presente na minha vida de um filme do Al Capone em que o Robert De Niro fazia o papel [do mafioso norte-americano]. [No filme] eles trocam o conselho de sentença na ultima hora. Eu tinha que fazer alguma coisa para proteger o jurado. Se ele sentisse que poderia sofrer represália por isso, não iria condenar", contou o procurador aposentado.
Mas, voltando a maio de 2006, o marco inicial da onda de terrorismo foi a morte a tiros do bombeiro João Alberto da Costa, ocorrida no dia 13 daquele mês em frente à sede do 2º Grupamento do Corpo de Bombeiros, no bairro de Campos Elísios, região central de São Paulo — outros dois bombeiros também ficaram feridos, mas sobreviveram. Posteriormente, os responsáveis foram condenados e a família da vítima foi indenizada.
"Acho que tiveram uma ordem de atacarem integrantes da PM e o primeiro que encontraram foi o bombeiro. Todos foram execrados dentro do PCC, porque esse fato foi muito comentado negativamente para a facção. Não pegou nenhum pouquinho bem. Todo mundo condenado [no caso], assim como todos que participaram da morte do juiz", complementou Talarico.
Ao longo daquele fatídico mês, 564 pessoas foram assassinadas no estado de São Paulo em crimes ligados aos ataques do crime organizado. Entre as vítimas contabilizadas, 505 eram civis e outras 59 agentes públicos — os ataques ficaram conhecidos como Crimes de Maio.
Contra-ataque e suposto acordo
Assustada, a população paulista exigia medidas do governo estadual para conter a escalada da violência. Assim, os responsáveis pela segurança pública decidiram contra-atacar duramente. Policiais civis e militares saíram às ruas com a ordem de reestabelecer o controle da segurança pública.
Uma das maiores operações foi deflagrada em uma noite de sábado na sede do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), na avenida Zaki Narchi, na zona norte paulistana, de onde dezenas de viaturas partiram para missões nas ruas da cidade.
"O que se viu é que as forças de segurança foram para a 'forra'. Jamais é justificado, mas é compreensivo, porque virou guerra. O crime percebeu que não tinha força [para enfrentar o estado]. Tanto que raramente você viu [outros] ataques. Os ataques ficaram mais escamoteados", avaliou o professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) Rafael Alcadipani.
Durante aquele período de confrontos violentos e instabilidade, correu a notícia que o estado, paralelamente à resposta nas ruas, teria negociado o encerramento da onda de ataques com as principais lideranças do PCC. Uma reunião teria ocorrido dentro do presídio de Presidente Bernardes com a participação de Marcola e representantes da cúpula do governo paulista. Tal acordo foi veementemente negado.
"Esses ataques cessaram e as pessoas falavam a boca pequena que tinha havido um acordo entre o governador Alckmin e o Marcola para que os ataques cessassem. Essa situação nunca ficou admitida pelo governo e muito menos foi checada com os lideres do PCC, porque o Marcola nunca deu entrevista. Um segredo de polichinelo", disse o procurador aposentado Carlos Roberto Marangoni Talarico.
O assunto se tornou um grande tabu e os governantes que assumiram o estado ao longo dos anos desperdiçaram uma oportunidade de modificar a forma de combater o crime.
"Essa coisa da negociação todo mundo sabe, mas ninguém prova nada. Especula-se que sim. Nenhum presídio funciona se não houver anuência dos criminosos que estão ali dentro. O diálogo com o crime é constante. Não se admite, mas é constante. Se [o acordo] for verdade, é completamente descabido. E explica porque continuam cada vez mais forte. Não há um enfrentamento objetivo e aprofundado... A lição não foi aprendida", completou o professor Rafael Alcadipani.
Efeitos dos ataques
Com o passar dos anos, a lembrança dos ataques impactou o pensamento da sociedade e, em consequência, norteou as políticas de segurança pública no estado. Um efeito observado pelo procurador aposentado Carlos Roberto Marangoni Talarico, que atuou no MP por quase 40 anos, foi o recrudescimento do uso da força na atuação das polícias e de profissionais de uma estrutura paralela, formada por seguranças particulares e vigilantes de rua, entre outros.
"O que sinto é que a ideia de insegurança coletiva passou a nortear as ações do estado. Conforme as pessoas se sentiram mais inseguras, houve demanda maior para ações, um aumento de efetivo de segurança pública por parte da sociedade, E infelizmente, no Brasil, a vida tem valores diferentes. Nesse país, quando se fala que morreu alguém, se pergunta quem era ele. [Os ataques] fizeram com que houvesse tolerância muito maior para a truculência policial", analisou.
Se por um lado os especialistas entendem que a experiência adquirida após a crise de 2006 proporcionou alguns avanços no enfrentamento da violência em São Paulo — com investimentos no sistema carcerário do estado, tecnologia e inteligência policial —, há divergências quanto às estratégias adotadas pelas administrações públicas para combater as organizações criminosas.
Combate ao crime organizado
O professor Rafael Alcadipani entende que é necessária a criação de uma força-tarefa com a participação de integrantes de forças das esferas estadual e federal, com o envolvimento de órgãos como Polícia Federal e Abin (Agência Brasileira de Inteligência), para minar as ações das principais facções em ação no Brasil.
"Tem que ser todo mundo junto. A gente não deu uma resposta como estado. Dos ataques para cá, a gente deu uma resposta violenta. Sempre aparece um 'tiro, porrada e bomba'. Resolveu o quê? No Brasil, a gente cuida dos sintomas, mas não da causa, com inteligência e articulação. De lá para cá, o PCC virou uma empresa do crime multinacional", complementou o professor da FGV e membro do FBSP.
O promotor aposentado Carlos Talarico também destacou a expansão e a diversificação dos negócios do PCC ao longo dos últimos 15 anos, com o tráfico de drogas — considerada como a principal atividade da facção —, assaltos a bancos e assassinatos. Por isso, ele descarta a criação de uma força especial para lidar com o crime organizado.
"O PCC diversificou-se. Virou uma espécie de franquia. Desde que receba a parte dele, aceita a ação. Aquela estrutura piramidal que dava no Marcola rapidamente foi desfeita. Quando as condenações surgiram, mudaram a estrutura. Passaram a ter ações decentralizadas. Dificilmente, vai haver uma ação seria como a bomba de Hiroshima no PCC, porque você não consegue mais localizar o centro. São sempre braços. Você consegue consegue neutralizar um braço, corta a cabeça da Hidra [de Lerna, figura da mitologia grega], mas outra cabeça nasce no lugar", finalizou.