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Coma, fim e recomeço: a luta de sobreviventes de feminicídios

Após STF derrubar legítima defesa da honra, mulheres que resistiram a esses crimes revelam a luta para amenizar o trauma

São Paulo|Fabíola Perez, do R7

Sobreviventes de feminicídio: elas enfrentaram a dor e lutam para reconstruir suas vidas
Sobreviventes de feminicídio: elas enfrentaram a dor e lutam para reconstruir suas vidas

A lembrança do som da porta se fechando na casa em que Bruna Marsanovic Salomão Teles, de 26 anos, vivia com o ex-namorado ainda é nítida. Naquele momento, sentiu desconforto e certa angústia ao se perceber trancada. “Ele veio com a história de que queria voltar, mas eu disse que não”, diz. “Então, ele me acusou de ter outra pessoa, mas, na verdade, era ele quem tinha. Foi quando ele começou a ficar sem argumentos.” A essa altura da discussão, o então companheiro de Bruna e professor de academia passou a agredi-la fisicamente numa escalada violenta de tapas, socos e chutes.

“O soco na cabeça foi tão forte que perdi a consciência”, diz. “Tinha uma mordida na minha nuca e queimaduras de cigarro no meu peito”, conta. Bruna afirma que o ex-namorado a levou para o quarto e a jogou pela janela do sobrado em que viviam. “Fiquei em coma por um mês, tive traumatismo craniano encefálico e uma lesão na medula”, lembra. “Mas, pelo menos, tive a sorte de voltar para contar minha história. Muitas mulheres nem isso tem”, diz.

Mais de seis anos se passaram entre a tentativa de feminicídio sofrida por Bruna, em dezembro de 2015, e a decisão do STF (Superior Tribunal Federal) de considerar inconstitucional a tese da legítima defesa da honra - a votação aconteceu na noite de sexta-feira, 12 de março. Neste intervalo de tempo, foi usado amplamente o argumento de que grande parte dos homens matavam mulheres para "proteger a própria honra" - em casos de supostas traições em relações amorosas, por exemplo. Hoje, após a Corte derrubar a tese, mulheres lutam para enfrentar a dor e o trauma que restou após quase perderem a vida. 

“Trata-se de uma construção de uma narrativa em que existia uma honra dessa masculinidade a ser defendida e de que ela valeria muito mais do que a vida de uma mulher”, diz Marina Ganzarolli, presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo. “O feminicídio se baseia na ideia de que um homem pode dispor da vida de uma mulher da forma que ele bem entender em nome da honra ou moral”, afirma.


O feminicídio se baseia na ideia de que um homem pode dispor da vida de uma mulher da forma que bem entender em nome da honra ou moral

(Marina Ganzarolli, advogada)

Assim, em uma decisão histórica, os 11 ministros da Corte avaliaram que a tese contraria princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero e, por isso, não pode ser aplicada nos tribunais do júri como argumento de defesa em casos de feminicídio. O questionamento ao argumento foi apresentado ao Supremo pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista) e acatado pelo ministro Dias Toffoli.

Em fevereiro, o ministro chegou a vetar o uso da tese que considerou “esdrúxula”, mas a decisão ainda precisava ser referendada pelos demais magistrados da corte. “Caminhamos por décadas, viramos uma democracia, consolidamos uma constituição, mas observamos que as poucas mulheres que buscam a Justiça e conseguem ainda eram submetidas a esse argumento para mitigar a punibilidade e a pena dos acusados”, diz Ganzarolli, que é coautora da ação julgada pela Corte.


A fisioterapeuta mineira Ana Clara Pereira Dias, de 31 anos, também vítima de uma tentativa de feminicídio, em novembro do ano passado, ainda não retornou do coma para contar sua história. “Ela está em estado vegetativo, só abre e fecha os olhos e não responde aos estímulos”, diz Kércia Pereira Dias, irmã de Ana. “Ela levou um tiro na testa, mas como foi de cima para baixo, não chegou a alcançar o cérebro. A bala se alojou na nuca e causou lesão cerebral. Ele se matou na sequência.”

Desde outubro, Ana Clara havia conseguido uma medida protetiva para manter o ex-companheiro distante por tê-la mantido em cárcere privado. “Sempre que ele se aproximava da região em que ela estava, eu recebia alertas. Mas no dia que foi até a clínica, ele camuflou a tornozeleira eletrônica e o sinal não foi emitido”, diz Kercia. “Só soube do ocorrido quando removeram o corpo dele e me ligaram para avisar que levariam minha irmã para o hospital.


Um crime que encobre outros

A promotora de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), Fabiana Dal Mas, explica que o feminicídio é a “ponta do iceberg”. Em sua base, estaria outros crimes de violência contra a mulher que poderiam ter acendido um alerta, além de formas de prevenção desse tipo de violência que falharam. “A rede de apoio é muito assimétrica no país”, afirma. “O número de delegacias da mulher é muito discrepante.”

De acordo com Dal Mas, que também é integrante da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica, é preciso mais capacitação para juízes e policiais. “Alguns profissionais não fazem uma avaliação com as lentes de gênero para compreender que as mulheres estão morrendo dentro de casa. Esse olhar deveria ser mais debatido.”

As poucas mulheres que buscam a Justiça ainda eram submetidas a esse argumento (legítima defesa da honra) para mitigar a punibilidade e a pena do acusado

(Marina Ganzarolli, advogada)

O relacionamento de Ana Clara tinha pouco mais de um ano quando, em outubro, ela tomou a decisão de terminar. “Ele não aceitou”, diz a irmã. Nesse momento, o proprietário de uma academia do município de Sabará, no interior mineiro, começou a fazer ameaças contra toda a família. “Todo mundo ficou em alerta. Depois disso, mudamos ela de endereço para protegê-la. Mas, infelizmente, ele sabia onde ela trabalhava”, lamenta.

A advogada da OAB-SP, Marina Ganzarolli, explica que a perseguição de uma mulher no trajeto ou local de trabalho é uma prática recorrente. “São lugares em que o agressor sabe que ela vai estar. Além da perseguição física, pode ocorrer ainda a digital, que acompanha a mulher onde quer que ela esteja, entra em todos os lugares”, afirma. “Em ambos os casos, a perseguição a mulher onde ela exerce suas atividades tem um recado claro do agressor de impedir a liberdade de ir e vir. É um constrangimento e um impedimento que busca impedir a mulher de se movimentar livremente.”

"Temos que buscar proteção por nossa própria conta%2C porque o Estado não nos garante.”

(Kércia Pereira Dias, irmão de Ana Clara, vítima de uma tentativa de feminicídio)

Kercia conta que a tentativa de assassinato contra a irmã abalou a família duplamente. “Minha mãe foi vítima de feminicídio. Eu, minha irmã e meu irmão ficamos órfãos aos 10, 6 e 2 anos”, conta. Passados 24 anos da morte da mãe, Kercia vive um trauma semelhante ao cuidar da irmã. “Todo mundo está muito cansado, abalado mentalmente. Essa situação desenterrou o passado e está afetando nosso futuro.” Segundo os médicos, o quadro de Ana Clara é irreversível. Ainda assim, a família tem esperanças de que, com o tratamento e a fisioterapia, ela se recupere. “Estamos todos nos dividindo para cuidar dela. Acredito que ela vá se recuperar, mas é preciso ter paciência”, diz a irmã que reveza com a tia e as primas os cuidados com Ana.

Justiça ou proteção, segundo Kercia, não foram garantias dadas à irmã. “Quem está passando por isso tem que sumir do mapa, se esconder. Ana tinha medida protetiva, saiu do campo de vista do agressor, mas infelizmente isso não foi suficiente”, diz. Deixar o emprego, pondera Kercia, é uma decisão muito difícil para a maior parte das mulheres. “Não pensamos nisso na ocasião, não sabíamos que ele seria tão ardiloso. Temos que buscar proteção por nossa própria conta, porque o Estado não protege.”

“Ele atirou e disse que fui assaltada”

Aos 18 anos, a estudante Rafaela Rossati Rios decidiu morar com o namorado, de 24. “Ele era mais velho, muito ciumento, e foi me afastando de todas as pessoas com quem eu tinha convívio, até da minha família”, diz. “Quando queria ver minha mãe, ele me levava e me buscava.” Meses depois, ao avisar que estava de saída para visitar a família, Rafaela ouvia do companheiro que “era melhor não ir”. “Era sempre por algum motivo relacionado a ciúmes. Quando eu ia para a escola, ele sempre falava que tinha me visto conversando com alguém.”

Certa vez, em 2014, Rafaela lembra que após uma briga, o ex-namorado, que trabalhava em um banco, saiu de casa nervoso. “Comecei a me arrumar para ir para a escola”, diz. “Quando ele voltou, começou a me acusar de ter mentido para ele, apontou uma arma para mim duas vezes e atirou.” A bala que acertou Rafaela entrou pelo queixo e atingiu a medula.

“Perdi os movimentos, mas fiquei consciente o tempo todo”, lembra. Segundo ela, o pai do então namorado morava na mesma casa e ao estacionar o carro na garagem ouviu a discussão. “Eles me colocaram no carro e me levaram para o hospital. Lá, disseram que fui assaltada.” Rafaela afirma que uma vizinha, que havia escutado a briga, ligou para sua mãe, que foi ao seu encontro e fez o boletim de ocorrência.

Sempre era por algum motivo relacionado a ciúmes. Quando eu ia para a escola%2C ele sempre falava que tinha me visto conversando com alguém.

(Rafaela Rios, 24 anos)

“Fiquei seis meses internada, tive que passar por uma cirurgia no pescoço e hoje sou cadeirante. No início, perdi os movimentos em todo o corpo, mas agora já consigo mexer os braços e as mãos. “Achava que não ia acontecer comigo. Mas hoje sei que, ao perceber o primeiro sinal de violência, devemos sair do relacionamento – porque sempre piora.” O ex-namorado de Rafaela foi condenado a 12 anos de prisão por tentativa de feminicídio.

A jovem que hoje tem 24 anos vive com a mãe, o padrasto e o irmão. “Hoje, eu já o perdoei, mas não quero contato. Acho que já consegui superar”, diz. Rafaela toma medicamentos antidepressivos e faz fisioterapia uma vez por semana com ajuda de um auxílio-doença. “Agora penso em retomar meus estudos porque estou há seis anos parada.”

A promotora de Justiça Fabiana Dal Mas afirma que é preciso avançar no sentido de trabalhar a conscientização dessas mulheres. “Sabemos que as vítimas de violência doméstica estão mais sujeitas a desenvolver doenças e problemas psíquicos, além do trauma físico”, afirma.

‘O problema é que a gente acredita na mudança’

Passados seis anos da tentativa de feminicídio da qual foi vítima, Bruna tenta reconstruir a vida com ajuda de tratamentos de reabilitação, da família e do esporte. No entanto, ela ressalta que romper o ciclo de violência não é uma decisão simples. “Tentei me libertar várias vezes, mas parece que eles criam um vínculo de dependência muito forte”, diz. “Ele fazia promessas de mudança e tinha controle sobre o meu psicológico.” Depois de sair do hospital e voltar para casa, Bruna lembra que a falta de perspectivas era um pensamento constante. “Quando passamos por um trauma desses, pensamos que a vida acabou”, afirma. “Pensava que ficaria para sempre em cima da cama.”

Entretanto, após começar a fazer sessões de reabilitação, Bruna recuperou aos poucos a independência e a autonomia. “Conheci outras vítimas de violência doméstica e isso me ajudou muito. Ao mesmo tempo, passei a me dedicar mais à reabilitação”, diz. Hoje, a jovem conta ter reconstruído a rotina. “A vida continua, ou a gente segue o percurso ou sofremos e fazemos todos a nossa volta sofrerem também. Hoje, me casei e me dedico ao hugby.” Apesar disso, ela faz o alerta: “o problema é que sempre acreditamos na mudança, mas ninguém muda completamente. Qualquer sinal de desrespeito, como levantar a voz ou tocar no braço, é o início do caminho. Hoje, tenho a sorte de contar a minha história.”

Alguns profissionais da Justiça não fazem uma avaliação com as lentes de gênero para compreender que as mulheres estão morrendo dentro de casa.

(Fabiana Dal Mas, promotora de Justiça de SP)

Um mês após ter ficado foragido, o ex-namorado de Bruna se entregou à polícia. Em setembro de 2016, ficou decidido que ele iria a júri popular. Em fevereiro do ano seguinte, após o julgamento, o ex-companheiro de Bruna foi condenado a 16 anos de reclusão por tentativa de homicídio triplamente qualificado, pela Lei Maria da Penha e por omissão de socorro. “Há um tempo ele me ligou da cadeia falando que me amava e que tatuou meu nome na cabeça”, diz.

Colheres de ouro

Após ter sido agredida fisicamente e mantida em cárcere privado pelo ex-marido, a médica Paula Veloso, de 33 anos, criou o projeto Colheres de Ouro que reúne depoimentos de vítimas de violência doméstica. Além da trajetória pessoal, o que motivou Paula a montar o projeto foi o caso da advogada Tatiane Sptizner, agredida e jogada de uma sacada pelo marido, no Paraná. “Vi que a mesma coisa poderia ter acontecido comigo” diz. “Eu sairia como a louca que pulei e ele como o viúvo.”

Paula viveu um relacionamento de nove anos, dos quais, os últimos três, passou casada. Ela e o marido se conheceram na faculdade de medicina. “Por ser mais velho, ele tinha um discurso de que costumava dar conselhos para o meu bem”, diz. “Mas eram coisas impositivas, ele sempre estipulava onde eu deveria trabalhar, queria que eu estivesse nos mesmos lugares que ele e sempre diminuiu minha autoestima.”

Com as outras pessoas, o ex-marido de Paula era educado e prestativo. “Ele fazia questão de fazer o bem e mostrar o que fazia diante das pessoas”, afirma. Até que Paula começou a crescer na carreira e teve que ouvir do ex-companheiro que os empregos que ela arrumara e as viagens que fazia haviam sido com a ajuda dele. Na madrugada do dia 4 de março de 2018, Paula voltava de um congresso, quando o então marido estava em uma comemoração familiar no salão de festas do prédio em que viviam.

“Subi para dormir porque daria plantão no dia seguinte. Ele subiu, acendeu a luz, começou a me xingar, me espancar até dizer que queria me matar. Machuquei o olho, meu rosto ficou inchado e fiquei com diversos hematomas no corpo todo”, lembra. “A verdade é que não tinha motivo, ele estava muito bêbado. Quanto mais eu gritava, pior ele ficava.” Paula foi então arrastada pela casa e trancada no quarto. “Tentava não ir para perto da cozinha porque tinha medo de ele pegar alguma coisa lá. Só pensava que morreria ali mesmo.”

Antes de pegar no sono, o agressor de Paula mandou mensagem para o irmão pedindo que ele fosse embora do prédio já que “estava tudo bem”. “Ele tomou meu celular, mandou mensagem para minhas colegas de trabalho avisando que eu não iria trabalhar no dia seguinte porque estava passando mal”, lembra. “Só umas 6h da manhã engatinhei até onde estava o celular, liguei para minha irmã e pedi para ela chamar a polícia.”

Paula soube depois que os vizinhos ouviram gritos e acionaram a polícia. Mas foram informados de que não havia viatura. Na manhã do dia seguinte, a médica conta que a polícia já havia cercado o prédio. “Ele foi para a delegacia e eu, para o hospital”, diz. “Ele achou que não ia acontecer nada, mas foi condenado a três anos e oito meses por lesão corporal grave, cárcere privado e ameaça grave.”

Ele tomou meu celular%2C mandou mensagem para minhas colegas de trabalho avisando que eu não iria trabalhar no dia seguinte porque estava passando mal

(Paula Veloso, 33 anos)

A partir daquele momento, com ajuda dos pais, Paula contratou uma advogada para cuidar do divórcio e obter a medida protetiva de urgência. Hoje, três anos depois, ela faz terapia e reconhece ter vivido um relacionamento abusivo. “Mas isso é muito difícil no primeiro momento, ninguém se apaixona por um agressor”, afirma. “Apesar de existir aquela frase de que em briga de marido e mulher não se mete a colher, eu tive algumas colheres que me ajudaram. Caso contrário, não teria saído viva de lá.”

O caso de Paula, porém, não é considerado tentativa de feminicídio. Isso porque, apesar de o agressor ter afirmado que queria matá-la, ele não utilizou arma de fogo no crime. De acordo com Ganzarolli, existe na Justiça um entendimento de que a lesão corporal grave incapacita a mulher para o trabalho por um determinado período e a lesão leve deixa escoriações, mas não incapacita a mulher. “Já vi casos em que, diante de três costelas quebradas e um deslocamento do maxilar, o perito considerou lesão corporal leve”, diz. “Tudo é diminuído, a lei Maria da Penha não é aplicada e só se fala em justiça criminal enquanto deveríamos estar conversando sobre um sistema de proteção às mulheres.”

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