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Entregadores de app 'pagam para trabalhar' com alta de combustíveis

Rotina exaustiva por ganho real nulo escancara precariedade na categoria. Protestos por aumento ocorrem no fim de semana

São Paulo|Guilherme Padin, do R7

Entregadores de aplicativo atuam até 12 horas diárias e ganham em média R$ 1.172,63
Entregadores de aplicativo atuam até 12 horas diárias e ganham em média R$ 1.172,63

A recente alta no valor dos combustíveis afetou a rotina e o bolso de milhões de brasileiros em março e tem prejudicado especialmente uma categoria de trabalhadores. Os entregadores de aplicativo, que atuam de nove a 12 horas diárias e seis dias por semana para obter uma renda média de R$ 1.172,63 mensais, agora se deparam com um cenário praticamente insustentável.

“Os motoboys já percebem que a classe paga para trabalhar”, relata Altemício Nascimento, de 54 anos. 

Nascimento e outros profissionais que atuam sobre duas rodas contaram à reportagem do R7 como as condições dos motoboys, já em ritmo de precarização desde o início da pandemia, pioraram consideravelmente desde a última elevação nos preços da gasolina e do diesel.

Sob esse contexto os motofretistas convocaram atos nacionais nas principais capitais brasileiras, marcados para os dias 1º, 2 e 3 de abril, para demandar, sobretudo, o aumento nas taxas de entrega.


Em geral, o ganho bruto varia entre R$ 2.000 e R$ 3.000. Mas os gastos com o combustível — há quem desembolse mais de R$ 1.200 mensais só com gasolina —, e a manutenção dos veículos, entre outros investimentos, fazem o rendimento cair quase à metade no fim do mês.

Após o aumento agudo no valor cobrado nas bombas — desde o início de 2019, a gasolina subiu quatro vezes mais que o salário mínimo —, nenhuma opção parece satisfatória, como afirma Rafael Felix, membro de movimentos que estarão nas ruas no fim de semana:


“O aumento dos combustíveis implica não só nos ganhos dos entregadores, mas também na obrigatoriedade de mais horas de trabalho para poder complementar os gastos”.

Diante desse cenário, parte das plataformas anunciou reajustes nas taxas. Porém, ainda são vistos como insuficientes pela classe, que considerava as taxas baixas e demandava aumentos havia pelo menos dois anos, desde o início da pandemia.


Altemício Nascimento diz receber relatos de vários motofretistas que deixaram de rodar de terça a quinta-feira, quando a taxa é inferior às de fim de semana e segunda-feira, porque as despesas com o combustível estão muito altas, sem compensar os dias trabalhados. Outros, de fato, já abandonaram a atividade.

“O trabalhador põe isso tudo na ponta do lápis: teria que tirar um almoço, a janta, e ainda assim não faria dinheiro para ele. Os entregadores entendem que estão trabalhando exageradamente para os apps”, comenta. 

Estamos com um segmento mergulhado na precarização%2C onde os aplicativos não querem ter responsabilidade trabalhista com os trabalhadores%2C pagam o que querem%2C e fica uma situação difícil

(Gilberto Almeida, presidente do SindimotoSP)

Edgar Francisco da Silva, conhecido como Gringo, presidente da Amabr (Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil), também pondera que os motoboys têm pago para trabalhar.

O rendimento, que não é alto, foi impactado pelas despesas (combustível e manutenção) de maneira expressiva, e, além disso, os entregadores têm uma falsa sensação de ganho por não economizarem levando em consideração a depreciação das motos, ressalta Gringo. 

“Se o motoboy tira R$ 1.500 ou 1.600 por mês, ele pensa que está lucrando, com R$ 500 mais que o salário mínimo, e não considera que os equipamentos de trabalho e a motocicleta, que custou uns R$ 15 mil, saíram do bolso dele. E vai sair de novo quando tiver que trocar”, pondera.

Para o presidente da associação, o panorama descrito e a taxa que os motofretistas recebem tornam evidente que o recente reajuste dado por empresas como a iFood e a Rappi não está “nem perto do que precisam”.

Apps não garantem padrões mínimos de trabalho, diz estudo

Notas recebidas pelos apps no projeto Fairwork Brasil
Notas recebidas pelos apps no projeto Fairwork Brasil

As condições precárias enfrentadas pelos entregadores foram alvo do projeto Fairwork Brasil 2021: Por trabalho decente na economia de plataformas, vinculado à Universidade de Oxford. Divulgado em 17 de março, o estudo revelou que as principais empresas de aplicativo — iFood, Rappi, Loggi, Uber Eats, 99 e GetNinjas — não conseguiram comprovar padrões mínimos de trabalho decente em 2021.

A partir de entrevistas com os trabalhadores, a pesquisa definiu pontuações de 0 a 10 para cinco categorias: condições de trabalho, remuneração, contratos, gestão e representação. Nas notas gerais sobre a garantia dos direitos trabalhistas, Rappi, GetNinjas e Uber Eats receberam 0, a Uber foi avaliada com 1 e a iFood e a 99 tiveram 2 de pontuação.

Quanto às remunerações, em que foram considerados os valores recebidos, o custo dos equipamentos de trabalho e tempo de espera entre uma atividade e outra, apenas a 99 foi apontada por oferecer ao menos o salário mínimo local.

Somente a Uber e a 99 estiveram entre as empresas que oferecem condições justas de trabalho para proteger os trabalhadores dos riscos de cada tarefa, como com fornecimento de EPIs e apólices de seguro claras. A iFood foi a única citada em "representação justa" dos trabalhadores, e também por oferecer padrões básicos de contratos, com condições compreensíveis e acessíveis.

Entregador de app pedala na avenida Ermano Machetti, Água Branca, em São Paulo
Entregador de app pedala na avenida Ermano Machetti, Água Branca, em São Paulo

Acerca da gestão, com canais de comunicação eficazes, processos de apelação transparentes e políticas antidiscriminação, todas as empresas foram consideradas inaptas.

O relatório destaca que essas gigantes da tecnologia poderiam reduzir a desigualdade e o desemprego, mas que a pontuação registrada na pesquisa “fornece evidências de que os trabalhadores por plataformas [no Brasil], como em muitos países do mundo, enfrentam condições de trabalho injustas e sofrem sem proteções”.

Há duas décadas no ramo, Gringo descreve o contexto de insegurança em que se encontra a classe: a fim de garantir algum ganho, segundo ele, é comum que os entregadores deixem até de se alimentar para economizar, estendendo a jornada em uma profissão já precarizada. 

Sem capacitação oferecida pelos aplicativos, explica ele, os trabalhadores se utilizam de um veículo danificado, em muitos casos, com peças falsificadas para poupar gastos. Ainda têm de acelerar nas corridas para garantir mais entregas que o habitual, em um expediente exaustivo, ultrapassando dez horas diárias.

“Aí, não tem outro caminho a não ser o acidente”, completa. Em São Paulo, a partir do início da pandemia — entre abril de 2020 e junho de 2021 —, período de aprofundamento da precarização na categoria, os acidentes envolvendo motocicletas subiram 45,5% e as mortes, 13,5%, segundo dados do Infosiga, sistema do governo estadual.

Outra pesquisa recente, realizada pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) em parceria com a OIT (Organização Internacional do Trabalho) no Recife (PE) e em Brasília (DF), mostrou que a renda líquida mensal dos entregadores era de R$ 1.172,63, ou de R$ 5,03 por hora trabalhada.

A quantia representa menos da metade do valor bruto, que se dissipa entre gastos como combustível, aluguel, seguro, manutenção, plano de dados do celular e alimentação durante o trabalho. Do perfil dos entrevistados, a maioria era formada por homens (92%), jovens até 30 anos, pretos ou pardos (68%).

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A insegurança — financeira e trabalhista — da classe dos motoboys e bikers pelo Brasil também foi apontada em pesquisas de outras universidades nos primeiros meses da pandemia de Covid-19.

Um estudo de pesquisadores da Remir Trabalho (Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista), da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que ouviu trabalhadores em 26 cidades brasileiras, mostrou que os entregadores aumentaram substancialmente as horas trabalhadas com o início da pandemia, e mesmo assim perderam renda.

O levantamento mostrou que 56,7% dos profissionais tinham uma jornada de nove horas ou mais, e 52% trabalhavam nos sete dias da semana. No entanto, com a queda nas taxas dos bônus, a remuneração diminuiu 60%, em média.

Outra pesquisa, essa da UFBA (Universidade Federal da Bahia), revelou que os entregadores que tinham na atividade a única fonte de trabalho atuavam 64,5 horas por semana — ou dez horas por dia, seis dias por semana —, e 85% deles ganhavam menos de dois salários mínimos. Considerando o salário por hora, o resultado foi mais alarmante: nesses termos, 51,7% recebiam menos de um salário mínimo.

Muitas vezes o motoboy deixa de se alimentar%2C de comprar uma peça original%2C e acaba se comprometendo. É uma profissão de risco%2C com uma pessoa sem capacitação%2C mal alimentada e com veículo precarizado%2C correndo numa jornada excessiva

(Edgar da Silva, presidente da Amabr)

O relatório apresentou outro dado relacionado à precariedade da função dos que trabalham sobre duas rodas: um a cada três havia se acidentado no trabalho. Entre esses, 72% criticaram a falta de apoio das plataformas ou foram bloqueados após o acidente.

Gilberto Almeida, presidente do Sindimoto-SP (Sindicato dos Motofretistas de São Paulo), diz que a gasolina tem sido um pesadelo na vida dos entregadores, que, como destaca, ganham uma quantia que não supre todas as necessidades dos trabalhadores.

Com as consecutivas altas nos combustíveis, prossegue ele, o ganho real de quem trabalha com os aplicativos praticamente acaba. 

“Estamos com um segmento mergulhado nesse sistema de precarização, onde as empresas de aplicativo não querem ter responsabilidade trabalhista com os trabalhadores, pagam o que querem, e fica uma situação difícil”, diz Gil. 

Protestos no fim de semana

Manifestações deverão ocorrer entre esta sexta-feira (1º) e domingo (3) em ao menos dez capitais e outras cidades brasileiras. A principal reivindicação vem se repetindo em todos os protestos dos últimos dois anos: o aumento nas taxas de entrega.

Se no primeiro grande ato nacional, em 1º de junho de 2020, os valores recebidos eram considerados insuficientes pelos profissionais, agora a conjuntura é mais grave, uma vez que, segundo a categoria, a demanda nunca foi atendida e os preços dos itens básicos — combustíveis incluídos — têm subido de forma substancial.

Os protestos deste fim de semana terão, também, outras exigências: o fim dos bloqueios injustos — e mais transparência sobre eles —, da entrega por agendamento e da chamada "rota dupla", quando mais de uma entrega é feita na mesma corrida, mas o trabalhador recebe por apenas uma.

“Esse protesto vai ser um adendo sobre a precarização para com os entregadores, que vivem sendo escravizados por essas empresas”, diz Rafael Felix.

Outros atos foram registrados em março, como na terça-feira (29), entre motoboys no Rio de Janeiro e motoristas de aplicativo, também diretamente afetados pela crise, em vários municípios pelo país.

Motoristas de app também são afetados

Os consecutivos aumentos nos combustíveis afetam os motoristas de aplicativo, que foram às ruas de municípios paulistas, mineiros e fluminenses protestar na terça-feira (29).

Desde 2016 dirigindo com a Uber, Rosemar Pereira relata que só com a última alta sentiu uma redução de cerca de 15% nos ganhos totais. Ele cita que os reajustes de 5% e 6,5%, oferecidos pela 99 e a Uber, respectivamente, não farão diferença nenhuma na rotina dos trabalhadores da categoria.

“O que o motorista precisa, e precisa demais, é de um aumento real, que cubra no mínimo a inflação do combustível. Os apps não estão nem aí pra gente. Querem mais que cada um se vire na rua”, diz o motorista.

Para ele, o reajuste oferecido aos taxistas (veja abaixo), está mais próximo do que ele e seus colegas de classe reivindicam. “Se tivéssemos um reajuste como o do táxi, a nossa categoria ficaria muito, mas muito feliz. O nosso, de 6,5%, é uma vergonha. Ainda mandam a nota dizendo que é provisoriamente, ou seja, pode cair”, prossegue Pereira.

Tabela de reajustes dos táxis na cidade de São Paulo
Tabela de reajustes dos táxis na cidade de São Paulo

Segundo o profissional, com o atual cenário, não há condições para os motoristas fazerem reparações nos carros ou trocá-los, o que dificulta ainda mais que permaneçam desempenhando suas funções.

“A categoria está com a corda no pescoço”, conclui.

Posicionamentos

Em nota, o iFood destacou o reajuste de 50% do valor mínimo do quilômetro rodado (de R$ 1 para R$ 1,50) e da taxa mínima (de R$ 5,31 para R$ 6), afirmou respeitar o direito de manifestação da categoria e se manter aberto para o diálogo.

Já o Rappi assegura ter oferecido um aumento de 40% nas tarifas aos entregadores entre junho de 2021 e fevereiro deste ano, além da criação de um fundo de R$ 25 milhões para reajustes periódicos.

A respeito do Fairwork Brasil, o GetNinjas afirmou que não foi consultado durante a elaboração do relatório para esclarecer seu modelo de negócios, que, segundo a nota, se diferencia dos demais citados na pesquisa.

“Explicando melhor, o GetNinjas opera como um classificado online, em que prestadores de serviço - o que inclui micro e pequenos empreendedores - anunciam seus serviços e conseguem novos potenciais clientes. Dessa forma, os profissionais utilizam a plataforma como um canal de anúncio para divulgar serviços e negociar com potenciais clientes”, escreve o comunicado.

Segundo a empresa, o contato, a negociação e o pagamento entre profissionais e clientes são realizados fora da plataforma, portanto são os prestadores que definem preço, horário e condições do serviço.

Sobre o protestos dos entregadores em si, a plataforma disse que “essa questão nada tem a ver com o público do GetNinjas, visto que não temos entregadores e nem cobramos taxa em cima do serviço prestado pelos profissionais que anunciam na plataforma”.

A Uber, por sua vez, diante da recente alta nos combustível, disse que fará um reajuste temporário de 6,5% no preço das viagens, e que, por meio de uma parceria, está realizando ações de desconto de 20% no abastecimento de gasolina pelos motoristas na rede Ipiranga.

A Loggi não quis se manifestar sobre as demandas da categoria.

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