Esquema de desvio de dinheiro de hospitais usava PMs da Rota e chefe do PCC como seguranças
Grupo que desviou cerca de R$ 500 milhões não fazia juízo de valor sobre seus guarda-costas: podiam ser policiais ou traficantes
São Paulo|Luís Adorno, da Record TV
Uma organização criminosa chefiada por um médico de 47 anos no interior de São Paulo conseguiu desviar cerca de R$ 500 milhões de hospitais e unidades de saúde por meio de um esquema sofisticado de contratos de gestão firmados junto às OSS (Organizações Sociais de Saúde). Para evitar que o dinheiro desviado fosse roubado ou não chegasse devidamente às mãos desejadas, a organização contratou como seguranças membros das principais forças bélicas de São Paulo.
O esquema mantinha como guarda-costas policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) em dias de folga, além de um criminoso apontado pela Polícia Civil como chefe do PCC (Primeiro Comando da Capital). O caso foi revelado pelo jornal O Estado de S. Paulo. De acordo com o inquérito policial, rotarianos e integrantes da facção agiam com a mesma finalidade, em situações paralelas. Enquanto um grupo fazia a segurança para a organização em cidades da Grande São Paulo, o outro atuava no litoral paulista.
Segundo a investigação, o chefe do esquema era o médico Cleudson Garcia Montali, que foi condenado a 200 anos de prisão. De acordo com a polícia, ele "criou e estruturou, de forma bastante ordenada, uma verdadeira organização criminosa especializada no desvio de verbas públicas destinadas à saúde, por meio de um esquema fraudulento baseado na celebração de contratos de gestão entre as OSS por ele geridas e o Poder Público e, num momento seguinte, através do superfaturamento nos contratos celebrados entre as OSS e as empresas 'prestadoras de serviços'."
As OSS, por lei, não podem ter o lucro como finalidade. No entanto, o grupo utilizava duas OSS, nas cidades de Birigui e de Pacaembu, para repassar o dinheiro público por meio de contratos de gestão. Segundo a Polícia Civil, o grupo atuava "fortemente em licitações encetadas por meio de chamadas públicas, com o objetivo de gerir/administrar prontos-socorros e hospitais de diferentes cidades do Estado de São Paulo e também fora dele".
O esquema era dividido entre núcleos muito bem organizados, sendo eles: político, empresarial, jurídico, de chefia, administrativo e de lavagem de dinheiro. Para tanto, parte dos integrantes chamados para colaborar precisava estar armada. Mas pouco importava como os integrantes conseguiam munição. Para a organização, podiam ser policiais ou criminosos. O importante era a disposição em colaborar.
Moizes Constantino Ferreira Neto, administrador do hospital Antonio Giglio, em Osasco, foi recrutado para a máfia pelo médico Cleudson Montali, concluiu a investigação. O grupo, segundo o MP (Ministério Público), tinha como finalidade o desvio de dinheiro público repassado ao IDS (Instituto de Desenvolvimento Social), bem como às OSS Irmandade Santas Casas de Birigui e Pacaembu.
A Promotoria apontou que o sargento da PM Marcelo dos Santos Ferreira e outros três policiais militares integrantes da Rota faziam a segurança de Ferreira Neto. Além disso, o policial, de acordo com informações fornecidas pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) à Polícia Civil, realizou dois depósitos bancários tidos como "suspeitos" a mando de Ferreira Neto, no final de 2019, nos valores de R$ 327 mil e de R$ 184,9 mil.
Outro policial militar, Diego Barbosa Medeiros, de acordo com interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça, planejou vingar criminosos que roubaram o carro de um dos filhos de Ferreira Neto. A Polícia Civil documentou ter identificado que Medeiros indicou para Ferreira Neto, no início da noite de 21 de janeiro de 2020, por telefone, como seria o plano de vingança.
O policial afirmou na ligação: "Eu tô indo com três polícia aqui da Rota à paisana, entendeu? Qual que é o plano: ele vai ficar aqui dentro do carro e, se ficar rodando dois carros, a gente corre o risco de ser abordado por viatura, entendeu? [...] Além das viaturas abordarem a gente, a gente tem que ficar trocando ideia, queima e a gente corre o risco de ser abordado por mala, entendeu? Por isso eu não queria que o senhor fosse, nesse sentido, entendeu?".
Em setembro de 2019, conforme apontou a investigação, Medeiros recebeu R$ 179 mil — parte do dinheiro desviado do hospital Antônio Giglio, em Osasco — para que ele entregasse o montante a outro integrante da máfia da Saúde. Esse outro integrante faria o dinheiro chegar até o chefe, Cleudson Montali. "Faria" porque o dinheiro não chegou: foi apreendido pelo GOE (Grupo de Operações Especiais) no cumprimento de um mandado de busca e apreensão naquele mês.
Chefe do PCC na segurança
Para além da utilização de PMs da Rota, a investigação chegou até o PCC por meio de investigações que tinham como alvo Regis Soares Pauletti, o operador financeiro do médico Cleudson Montali, que era funcionário na Santa Casa de Pacaembu como gerente administrativo da entidade. Segundo a investigação, era ele quem executava tarefas a mando de Montali, "inclusive, com procuração para estabelecer contratos entre as OSS de Cleudson Montali e o poder público".
Ainda de acordo com a investigação, Pauletti participava de modo ativo de praticamente todas as atividades desenvolvidas pela organização criminosa. Em especial, aquelas que envolviam grandes quantias em dinheiro, como teria ocorrido, por exemplo, na compra de uma fazenda em Aparecida do Taboado (MS). "Até hoje, o líder Cleudson [Montali] cuida de todos os pagamentos afetos à referida propriedade, a qual fora adquirida na sua totalidade (em torno de R$ 10 milhões) com dinheiro público, utilizando-se de dissimulação", documentou a Polícia Civil.
Como prova de fidelidade, Pauletti recebeu de Montali, segundo a polícia, um carro Hilux avaliado em R$ 180 mil. "O controle administrativo de Regis não se resume apenas à OSS Pacaembu, criando, naturalmente, a possibilidade de aumentar o leque de contratos de gestão administrados pela organização criminosa, notadamente por meio da criação de hospitais de campanha diante da pandemia do coronavírus. Assim, no momento em que as mortes por coronavírus assolam o território brasileiro, criaram 'um pequeno exército' com a finalidade e oportunidade única de ficarem ainda mais ricos com desvio de dinheiro público da área da saúde", complementou a polícia em relatório.
Mas o que mais chamou a atenção dos investigadores, para além dos crimes administrativos, foi o fato de que Pauletti sabia e achava graça da situação de um dos seguranças contratados para trabalhar no hospital de Carapicuíba, que não tinha carteira de habilitação, tampouco título de eleitor. Isso porque o contratado, Genílson José Duarte Amorin, conhecido como Gê, era apontado não só como integrante da facção criminosa PCC, mas, também, tido como um dos líderes da maior organização criminosa do Brasil.
Por meio de uma interceptação telefônica, verificou-se que, a mando de Cleudson Montali, o grupo decidiu contratar Amorin sabendo que ele teria "sintonia final do PCC", ou seja, chefe da facção paulista, além de comprovadamente ser sabido que ele agia como traficante e assaltante na Grande São Paulo. "Comentaram [nas ligações telefônicas] que estavam com dificuldade no registro no e-social porque Gê estava sem reservista e título de eleitor e com habilitação vencida há anos", apontou a investigação.
O MP diz que Amorin, entre outros crimes, comprava armas e drogas, mantinha contatos frequentes com chefes do crime organizado, questionava sobre procedimentos da facção em outros estados e também estava envolvido em roubos de carga. Mesmo assim, em um serviço paralelo ao do PCC, Amorin fazia a segurança do médico Cleudson Montali em negociações e entregas de dinheiro, de acordo com a Polícia Civil. Eles foram flagrados juntos, em fevereiro de 2020, buscando R$ 120 mil que teriam sido desviados de hospitais, em Curitiba.
Ainda de acordo com a investigação, Amorin foi contratado justamente por ser integrante da facção criminosa paulista. Segundo a investigação, os integrantes do esquema de desvio dos hospitais admitiram Genilson no grupo sabendo que ele "não tinha o perfil para ser contratado pelas OSS e somente seria contratado para fins de 'segurança', o que comprova que a sua presença somente se justifica em virtude da segurança decorrente da sua posição".
Coronel na chefia do núcleo político
Enquanto secretário de Saúde da cidade de Penápolis, no interior paulista, o coronel Wilson Carlos Braz favoreceu ilegalmente a organização criminosa em licitações, além de ter fraudado documentos para esconder desvios de dinheiro, de acordo com o MP. A investigação detalhou como o oficial agia a serviço de Montali.
Em 17 de outubro de 2017, a prefeitura de Penápolis publicou um edital para selecionar uma organização social para tomar conta das atividades médicas do pronto-socorro da cidade, por meio da modalidade de contrato de gestão. O secretário de Saúde integrou a comissão do certame, do qual um dos participantes era justamente a OS da Santa Casa de Birigui, que pertencia a Cleudson Montali.
Segundo a Polícia Civil, Braz "influenciou o executivo local no sentido de que alterasse o dispositivo legal que tratava do prazo para que as empresas licitantes se adequassem aos critérios técnicos do pronto-socorro, o que se deu por meio de decreto do Executivo que reduziu de dois anos para apenas cinco dias o prazo para que as empresas se adequassem aos critérios técnicos do pronto-socorro". A medida tinha como intuito a vitória da Santa Casa no certame. O que aconteceu.
Braz também integrou a comissão que atestou a regularidade da prestação de contas da OS da Santa Casa de Birigui mês a mês. "Mesmo diante dos apontamentos de irregularidades realizados pela própria comissão, não sendo tomada, por parte dele, qualquer providência contra a organização social que vinha administrando a saúde por meio de falcatruas e desvio de dinheiro público", apontou a investigação.
Indicado por Braz, a organização criminosa também contratou o coronel Eurico Alves Costa Júnior para administrar hospitais fora de São Paulo. Costa Júnior foi flagrado recebendo de Cleudson Montali uma mala com R$ 115 mil em espécie. O MP diz que esse dinheiro era fruto de desvio de hospitais. O coronel alegou à Justiça que não sabia o que havia dentro da mala.
Outro lado
O advogado Fabrício Sanches Mestriner, que representa Genilson Amorin, documentou nos autos que "com todo respeito às razões de decidir sobre a denúncia ofertada, respeitosamente, não há nenhuma situação calcada na análise pormenorizada das investigações colhidas nos autos, que demonstrem a volatilidade do acusado para a prática, em tese, da conduta criminosa".
De acordo com a defesa de Amorin, a denúncia não é precisa e não traz elementos que coloquem seu cliente como o criminoso, sem trazer provas da prática do delito que lhe foi imputado.
Por meio de nota, a defesa dos PMs Marcelo dos Santos Ferreira e Diego Barbosa Medeiros afirmou que ambos “jamais foram seguranças de nenhum dos investigados, muito menos de alguma organização criminosa investigada nesta operação”. Segundo o escritório João Victor Abreu & Advogados Associados, os PMs “trabalhavam como motoristas em seus horários de folga do Sr. Moizes Constantino. No ano de 2020, quando a operação se deflagrou, já foram devidamente punidos administrativamente por exercerem esse tipo de atividade”.
Ainda de acordo com a defesa dos PMs, “em nenhum momento, os dois militares foram alvo de investigação, muito menos denunciados pelo Ministério Público. Muito pelo contrário, oportunamente no curso da ação penal, foram ouvidos como testemunhas de acusação, onde, inclusive, Moizes restou absolvido”.
O mesmo escritório dos PMs representa Moizes Constantito Ferreira Neto. De acordo com nota dos advogados, ele foi agraciado, à época, por habeas corpus concedido pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). "Posteriormente, fora absolvido na primeira ação penal, por inexistência de crimes, e aguarda julgamento em outra ação penal que ainda está em curso."
Em relação aos PMs da Rota, "estes nada têm relação com Moizes, sendo que os mesmos à época dos fatos eram apenas motoristas da família, e nem sequer figuraram como investigados nestas ações, sendo já punidos administrativamente pela corporação", afirmaram os advogados.
Nos autos, os advogados de Moizes Constantino Ferreira Neto haviam afirmado que a investigação "é proveniente de um inquérito policial instaurado exclusivamente com base em alegações veiculadas por notícias anônimas". A defesa disse, também, que não havia, nos autos, nenhuma prova apta.
A reportagem não conseguiu contatar as defesas de Cleudson Garcia Montali, de Regis Soares Pauletti e dos coronéis Wilson Carlos Braz e Eurico Alves Costa Júnior. A Record TV também pediu uma entrevista aos promotores responsáveis pela denúncia. No entanto, os promotores disseram não poder se manifestar pelo fato de o caso estar sob segredo de Justiça.
Questionada sobre o envolvimento no esquema dos coronéis e dos PMs da Rota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) informou, por meio da Polícia Militar, que “Marcelo dos Santos Ferreira e Diego Barbosa Medeiros estão afastados das atividades operacionais e são alvo de procedimento apuratório junto ao órgão corregedor da instituição”.
A corporação afirmou, também, que “Wilson Carlos Braz e Eurico Alves da Costa Júnior não integram mais o quadro de policiais da ativa da PM desde 2013 e 2018, respectivamente” e que, “por decisão da Justiça, Braz foi colocado em liberdade, deixando o presídio militar Romão Gomes”.
A Corregedoria da Polícia Militar informou que acompanha os desdobramentos das investigações.