Entre junho de 2014 e junho de 2015, foram enterradas 791 pessoas como indigente em São Paulo, sendo 422 desconhecidas e 369 identificadas (veja no infográfico abaixo o perfil dessas pessoas). Nesse universo estão andarilhos, sem teto, indocumentados e até pessoas com documentos, mas que viviam sem contato com a família quando morreram. Há ainda pessoas desaparecidas cujos familiares fazem uma peregrinação por órgãos do Estado até descobrirem seus parentes mortos e já enterrados. Foi o que aconteceu com Wesley de Medeiros Morais, jovem de 16 anos que desapareceu na madrugada de 7 de junho, um sábado para domingo. Sem pai e sem mãe, ele morava com a avó no bairro de Campo Limpo. “A gente não pensou que seria tão sério. Como a gente tinha a informação de que ele estava por perto [de casa], então a gente só fez o boletim de ocorrência no dia 12”, diz o bancário Geraldo Medeiros Morais, 45 anos, tio do garoto. A essa altura, Wesley já estava morto. Vítima de atropelamento na marginal Pinheiros no dia 8, seu corpo aguardava no IML Central antes de ser enviado para enterro no cemitério Dom Bosco, em Perus, extremo norte da cidade. Sua família, no entanto, nada sabia e não foi comunicada. Nesse período, Geraldo visitou delegacias e IMLs da capital, mas não obteve informações sobre o rapaz. A família só teria notícias suas no dia 21, quando descobriu que o familiar havia sido enterrado como indigente. E quem ajudou Geraldo a encontrar o sobrinho não foi a Polícia Civil ou a Secretaria de Segurança Pública, mas o Google. Ele digitou o nome do jovem e o termo “desaparecidos” no site de buscas e chegou à lista que a prefeitura de São Paulo divulga desde junho de 2014 com a identificação de todas as pessoas enterradas como indigente na capital. A lista começou a ser publicada após uma investigação do Ministério Público de São Paulo revelar que, desde 2000, pelo menos 3.000 pessoas identificadas haviam sido enterradas como indigente. A prefeitura faz a lista a partir de informações recebidas dos dois órgãos responsáveis pelo envio dos corpos: o IML, ligado à Secretaria de Segurança Pública, e o SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos da Capital), da USP. O IML recebe corpos de “desconhecidos” (pessoas sem documento) e de vítimas de morte violenta. Já o SVOC recebe os chamados “não reclamados”, que são pessoas que tiveram morte natural, mas cujos corpos não foram reclamados por familiares. Como ambos os órgãos não prestam serviço de busca de parentes, então algumas pessoas identificadas acabam sendo enterradas como “indigentes”. “A lista [da prefeitura] foi criada por esse rolo todo”, diz a promotora Eliana Vendramini, responsável pela investigação. ─ Até que IML e SVOC se organizem, o serviço funerário está auxiliando a população a pelo menos saber quem está indo parar em Perus. A “desorganização” apontada pela promotora acontece porque, no caso do IML, falta um banco de dados digitalizado e unificado de todas as pessoas que passam por ali ─ o que facilitaria o trabalho de busca. No SVOC, o problema também é a falta de uma lista com os nomes dos cadáveres. Em ambos os órgãos, diz a promotora, falta um atendimento humanizado à população. É preciso ainda que os dados das pessoas que passam por IML e SVOC sejam cruzados com as informações sobre desaparecidos no Estado, o que poderia dar fim à saga das famílias que buscam parentes sumidos. Ela ainda questiona o enterro conjunto de “desconhecidos” e “não reclamados” no mesmo terreno. No caso do jovem Wesley, seu corpo foi encontrado em 8 de junho, no dia seguinte ao seu desaparecimento. Sem documentos, o boletim de ocorrência do atropelamento foi realizado sem sua identificação. No IML, no entanto, por meio das digitais, Wesley foi identificado. Ele foi enterrado no cemitério Dom Bosco na semana seguinte, de 15 a 19 de junho. A lista da prefeitura é divulga às sextas-feiras, no site, e aos sábados no Diário Oficial. Além de nome, são publicadas informações básicas como filiação, causa da morte e números do boletim de ocorrência e do distrito policial. O nome de Wesley entrou no site na sexta-feira e, dois dias depois, seu tio o encontrou pelo serviço de buscas. ─ No próprio dia 21 eu fui na delegacia [indicada na lista] e o pessoal ficou assim: “ué, mas você descobriu no site?”. Eu falei “sim, no site da prefeitura tem informação de desaparecidos, da funerária”. E eles não sabiam. Quer dizer, falta divulgação desse instrumento. Desde o início da divulgação, a lista já ajudou seis famílias a encontrar seus parentes mortos e enterrados como indigentes, de acordo com a prefeitura. Após descobrir o paradeiro de Wesley, “a gente ficou sem saber o que fazer, porque já tinha passado muito tempo, já tinha sepultado”, diz Geraldo. ─ Mesmo porque ele era criado pela minha mãe, que é idosa. Então a gente combinou de deixar onde ele está, quietinho, e ir cuidando do espaço no cemitério onde ele já se encontra, porque se a gente for exumar pra enterrar em outro lugar é mais sofrimento, é mais burocracia e a gente não quer passar por isso, principalmente por causa da minha mãe.Não identificados A família de Wesley só conseguiu encontrar o garoto após ele ser identificado durante a necropsia no IML. Mas há pessoas que passam tanto pela delegacia quanto pelo IML sem serem identificadas. É o caso de Rubens Ribeiro da Silva. Ele morreu em 7 de fevereiro deste ano, aos 29 anos, e foi enterrado duas semanas depois no cemitério Dom Bosco. Mas sua família só foi descobrir seu paradeiro após dois meses de buscas. Segundo a família, Rubens consumia drogas desde os 20 anos. Em uma noite de fissura e procura pela cocaína, ele entrou na favela de Heliópolis, de onde não saiu mais. O irmão de Rubens, Anderson Ribeiro da Silva, conta que o rapaz morava no bairro do Ipiranga com a namorada, enquanto a família vivia no Capão Redondo, zona sul da capital. No dia 2 de fevereiro, os parentes foram comunicados de que, após sair do emprego, ele mandara uma mensagem para a namorada dizendo que chegaria mais tarde. Como Rubens não voltou, começou a saga pela procura. ─ Nós fomos duas vezes ao IML em que o corpo do meu irmão passou. Ninguém falou nada. Foram dois meses de visitas a IMLs, delegacias, hospitais e albergues. Após insistentes pedidos, um delegado do DHPP (Delegacia de Homicídios e Proteção a Pessoas) decidiu ajudá-los. ─ Em abril ele nos ligou e falou: “tem um corpo aqui que a digital bateu com a do Rubens. Vem ver a foto”. Quando nós vimos a primeira foto, tivemos certeza. Ele foi encontrado morto cinco dias depois de desaparecer. Tenho certeza de que, se não tivéssemos investigado tudo sozinhos, não teríamos achado meu irmão. No dia do aniversario de Rubens, 7 de abril. A família conseguiu finalmente fazer uma cerimônia de despedida no cemitério, colocando uma lápide onde o corpo foi enterrado ao lado de outros indigentes. ─ Meu irmão bebia e usava drogas. Daí ele ficava muito chato, dava trabalho. Acho que ele incomodou alguém e pode ter sido morto.Mais duas famílias A partir de nomes publicados na lista de falecidos, a reportagem do R7 encontrou duas famílias que não sabiam que seus parentes haviam sido enterrados como indigentes. Um deles é Vagner Feitosa Pereira, de 22 anos, que morreu em 12 de maio passado e foi enterrado como indigente no cemitério da Vila Formosa. Os dados do IML recebidos pela prefeitura não indicam causa de morte, ocorrida no Hospital Municipal Waldomiro de Paula, em Itaquera. A família foi comunicada de sua morte pela reportagem no fim de junho, em contato com sua sobrinha, Alessandra Pereira. Ela informou que a família vai procurar saber as circunstâncias da morte e que pretende reconhecer o corpo por meio de fotos. A família de Donizete dos Anjos Silva também foi informada de sua morte pela reportagem. Ele morreu em maio de 2014, aos 42 anos, no Hospital Tatuapé por “insuficiência respiratória aguda”. Seus familiares, contudo, não o estavam procurando. Donizete tinha problemas com alcoolismo e tinha o costume de passar longos períodos sem contatos com os parentes, segundo explica sua prima, Cristiane Aparecida Lodger, de 32 anos. Ele se hospedava na casa dela quando visitava a família na zona leste. ─ Esses dias eu pensei nele, pensei em como ele ‘tava’, se ‘tava’ bem. Tinha esperança de encontrar ele ainda.Explicações Segundo o vice-diretor do SVOC, professor Carlos Augusto Pasqualucci, o trabalho de buscar e encontrar os familiares das pessoas não reclamadas é de responsabilidade da polícia. ─ Quando o SVOC recebe um corpo, ele espera que algum familiar se manifeste e reclame o corpo. Neste período, após 72 horas, é realizada a identificação datiloscópica e fotográfica do corpo e, além disso, informamos à Polícia Civil, através da 4ª Delegacia de Polícia de Investigação sobre Pessoas Desaparecidas, a existência desse corpo nas dependências do SVOC. É a Polícia Civil que detém as duas informações fundamentais para solucionar o desaparecimento de pessoa cujo corpo tenha sido encaminhado ao SVOC. A polícia emite tanto o boletim de ocorrência que registra o desaparecimento quanto o boletim de ocorrência que registra o óbito e direciona o corpo ao SVOC. Ao cruzar estas duas informações contidas nos referidos boletins de ocorrência sobre uma pessoa que desapareceu, a Polícia Civil localiza o corpo e, dessa forma, pode comunicar para a família o paradeiro do seu parente. Responsável pelo IML, a Secretaria de Estado da Segurança Pública informou em nota que “Rubens Ribeiro da Silva foi identificado no dia 26 de fevereiro deste ano, a família da vítima foi procurada e comunicada. Não foi possível realizar a identificação antes, apenas por meio de perícia, pois o corpo estava em avançado estado de putrefação”. Ainda segundo a SSP, “o 52º DP esclarece que Donizete dos Anjos Silva morreu de causas naturais no Hospital Municipal Tatuapé, cujo serviço social é responsável pela comunicação à família nesses casos”. “A Superintendência da Polícia Técnico-Científica informa que, conforme prevê a portaria DGP 10, de maio de 1993, o cadáver não reclamado é sepultado após 72 horas de permanência no IML. As informações sobre a vítima ficam cadastradas em um banco de dados e são fornecidos aos familiares, caso procurem o IML” , continua a nota da SSP. A secretaria afirma ainda que “a Polícia Civil usa o sistema de identificação digital (Afis), implementado pelo IIRGD (Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt), para cruzar dados de desaparecidos com os de pessoas mortas, possibilitando verificar se as impressões digitais e as fotografias de cadáveres de pessoas desconhecidas coincidem com as informações do banco de dados de desaparecidos do Estado de São Paulo”.